Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2008.
Com medo do escuro
Logo nos primeiros minutos de Entre Cães e Deuses, um estranho plongé mostra uma estrada em curva. A cena é um tanto insólita, pois a estrada é recortada em forte luminosidade, contrastando com a escuridão que a cerca. Ao final do filme, nessa mesma estrada, o jovem Hsien (interpretado por Johnathan Chang – o garotinho de As Coisas Simples da Vida) acende o caminhão de deuses-neon de Yellow Bull (Jack Kao), que havia saído para procurar gasolina. “Tenho medo do escuro”, diz o garoto. A questão que une essas duas cenas se aplica, com efeito, a todo o filme: há, em Entre Cães e Deuses, um excesso de claridade reinante. Não como efeito narrativo e estético – como em O Nevoeiro, de Frank Darabont, ou como as noites claras da primeira metade de Mal dos Trópicos, de Apichatpong Weerasethakul – mas como temor diante da possibilidade de esconder qualquer coisa do espectador. Não há espaço para a meia-luz, quanto menos para a escuridão completa.
Singing Chen faz um típico filme-panorama, onde os destinos de pessoas que não se conhecem serão amarrados parcamente pelo desague de eventos-crise. Suas personagens trazem, no corpo, marcas de um discurso: uma modelo de mãos em depressão pós-parto, casada com um bem sucedido executivo; uma jovem lutadora de artes-marciais; um revendedor/restaurador de imagens religiosas que perdeu uma perna; uma garota que vende seu corpo para ser estampado em peças de publicidade; um garoto que não pára de comer; um casal de aborígenes que tenta superar o alcoolismo e recuperar a confiança dos filhos.
Não há, portanto, ponto sem nó: se vemos como a geladeira do jovem casal é simetricamente organizada, é para que isso contraste com a desordem interna do relacionamento. Se o restaurador de estátuas tem que trocar a prótese de sua perna, é para pôr em crise sua mentalidade de conservação com a vida prática. Há, em Entre Cães e Deuses, um desejo visível de clarear todos os cantos da narrativa para o espectador, para que o vai-e-vem entre as estórias individuais não o abandone no limbo entre uma e outra. Mais surpreendente, porém, é que, ao fim, entende-se muito pouca coisa sobre um filme que deseja tão abertamente ser compreendido. Isso porque, se o parentesco voluntário com o trabalho de Alejandro Gonzáles Iñárritu é bastante claro, Singing Chen não tem, sequer, o domínio narrativo necessário para fazer seu filme funcionar. Antes mesmo de questionarmos suas escolhas, somos barrados pela inabilidade de sua própria realização. Para onde vai o raciocínio sobre o corpo tão rapidamente estabelecido como ponto de partida pela montagem? O que fazer com tantos personagens, tantas sub-tramas, tantos elementos jogados a esmo em uma narrativa que deveria se bastar?
É inevitável, portanto, a sensação de que o melhor caminho para Singing Chen seria deixar-se levar por suas pulsões visuais: além de um belo plano de um rosto flutuando no reflexo do céu e de alguns saltos de registro com as estátuas dos deuses, há, no filme, um mal ajambrado flerte com a linguagem publicitária que, se melhor explorado, criaria um subtexto visual e discursivo possivelmente interessante. Como subproduto de um cinema que já não sabe bem por onde pisa, Entre Cães e Deuses é um quebra-cabeça que, apesar de prometer formar, ao fim, uma imagem plena e reconhecível, parece composto por peças que nunca se encaixam de fato.