Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2008.
Autofagismo automático, automatismo autofágico
Não é nenhuma novidade que o cinema, como toda arte, é movido pela digestão de suas próprias partes. Assim como esse processo autofágico é capaz de gerar obras-primas das mais estimulantes (de Sergio Leone à Nova Hollywood; da nouvelle vague a Quentin Tarantino), há profusão ainda maior de subprodutos automáticos que se escoram na derivação como simples desejo de aparências. Delta deixa claro, antes mesmo de começar o filme, seu centro de filiação: em uma das cartelas de abertura, lê-se um agradecimento a Béla Tarr. Não é surpresa, portanto, que sua construção visual seja montada sobre um fragilíssimo repertório de cacoetes: atuações esvaziadas à Robert Bresson, elasticidade da duração aos moldes de Tarkovski, e um incessante desfiles de nucas em planos médios. A adesão a essa gestalt de um “cinema de arte moderno” pode até ser suficiente para o filme entrar em uma mostra importante aqui (concorreu à Palma de Ouro, no Festival de Cannes desse ano), e levar um prêmio especial acolá (o FIPRESCI, no mesmo festival). Com o natural desague do repertório das mostras estrangeiras no Festival do Rio, ao espectador fica a estimulante tarefa de separar a aparência, da substância.
No caso de Delta, todo o conceito (encenação, enquadramento, direção de atores, fotografia) cuidadosamente construído por Kornél Mundruczó é casca grossa e bem tramada que esconde, ao fim, um enorme espaço vazio. Mihail (Félix Lajkó) retorna para a casa da mãe após um passado distante ao qual não teremos acesso. Lá, encontra um novo lar com poderes plenamente estabelecidos: a mãe submissa, a meia-irmã de olhos baixos cheios de afeto, e o padrasto tirano. Não resta muita dúvida, portanto, qual rumo o filme seguirá no restante da projeção. Há, claro, uso intenso de toda sorte de simbolismo: a construção da casa sobre uma ponte (conectando mundos até então distantes, inacessíveis); a aproximação da irmã com uma tartaruga (e sua capacidade de viver tanto na água, quanto na terra); os pães e peixes “multiplicados” em uma tentativa final de confraternização com os habitantes daquele mundo; o incesto; o sacrifício. Tudo ali para significar algo claramente definido, sufocado pela impossibilidade de qualquer ambiguidade.
Há, sobretudo, um desejo de canonizar seus eleitos, construindo personagens de bom coração, dispostos a perdoar a maldade alheia pela plena convivência. E há, também, o mal. Se realizar um filme rigoroso e pouco inventivo não é nenhum crime (só um tédio, talvez), há, porém, uma sequência em Delta que o coloca um tanto abaixo da nulidade: quando o pai puxa violentamente a filha para fora de casa, a câmera – até então concentrada em planos médios ou mais aproximados – se afasta para um estranho plano geral. Um longo travelling acompanha os corpos que se degladiam, até que o combate cessa. Corte para um close das coxas da filha, cobertas de sêmen. O afastamento da câmera gera a incômoda sensação de que o ato de violência, puro e simples, não importa tanto quanto a consumação do incesto. Se o estupro não houvesse, a agressão física não seria suficientemente digna de atenção. O raciocínio – visível e voluntário na construção do plano – expõe uma lógica que, mesmo quando pensa a câmera, o faz em nome da perversão.
Pingback: Changeling (2008), Clint Eastwood - FABIO ANDRADE