Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2008.
Um filme não é um filme
[REC] é o mais acabado exemplo de uma recente doença a consumir parte bastante considerável da produção audiovisual – do cinema ao videoclipe – mundial contemporânea: a síndrome do conceito. Define-se um traçado facilmente identificável e minimamente original, ao qual o filme serve como balão – raramente expandindo seu combustível inicial, mas sim sendo expandido por ele. Em vez de o conceito funcionar como semente criativa para um processo que se alimenta de si mesmo, ele se encerra em suposta auto-suficiência, gerando filmes que não são filmes, mas sim assinaturas acessórias que se esvaziam como falsas rubricas. Se existe, ao fim, um filme – ao menos fisicamente falando – ele remete o tempo todo a uma idéia original, como se cada fotograma viesse ratificar uma partida prévia já encerrada em seu anunciado. Um cinema de trailers e sinopses, onde o filme, em si, importa menos do que a capacidade de sua mínima estrutura-mãe arrastar pagantes aos cinemas – que, no caso de [REC], rendeu uma sintomática refilmagem norte-americana no ano seguinte ao seu lançamento original, e a previsão de uma seqüência para 2009.
Seria, portanto, um equívoco metodológico se aproximar de [REC] por qualquer via que não esse conceito-matriz: ao acompanhar um grupo de bombeiros por uma noite, uma equipe de televisão acaba isolada em um prédio onde os moradores parecem infectados por uma bactéria que os transforma em zumbis. É essa, portanto, a idéia que nutre [REC] e, às suas ambições, talvez bastasse Jaume Balagueró e Paco Plaza manterem um mínimo de coerência realizadora à modalidade de registro escolhida. É preciso diferenciar, de fato, coerência de verossimilhança – questão tão alienígena a esse filme que usá-la como baliza condenaria qualquer possibilidade de relação em teimosa má vontade. Mas em filmes em que o conceito é elemento tão vital, nada mais adequado do que esperar que os realizadores o tenham como livro de princípios; como estrutura indesviável que determina toda a realização da obra. Se estamos diante de um conceito, e não exatamente de um filme, há de se exigir, por coerência, solidez em sua estrutura. É exatamente aí que [REC] deixa de ser uma sinopse em papel minimamente interessante, e se faz um monumental desastre filmado.
Apesar de também tomar a textura do vídeo como sintoma de realidade, [REC] parte de princípio diferente ao que norteia filmes como A Bruxa de Blair (1999), de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, ou Cloverfield (2008), de Matt Reeves: enquanto eles usavam o vídeo para se aproximar de registros amadores, o filme de Balagueró e Plaza tem como maior referência o telejornalismo – imagem que tem o mesmo suporte predominante, mas que parte de diretrizes diametralmente opostas. Se há nas filmagens amadoras uma tendência natural ao desenquadramento, às variações de balanço de cores e foco, e à imagem que treme em desequilíbrio visual, o telejornalismo vai, em sua busca por imagens “auto-geradas”, na contramão absoluta: cinegrafistas de ombros de chumbo, treinados para nunca enquadrar nada só parcialmente, pois no telejornalismo a imagem é a informação, e a informação não parecerá válida se não aparentar estar completa.
A câmera desestabilizada de [REC] aparece, portanto, mais como ferramenta na criação de uma experiência aparente do que como elemento de coerência estilística: não é uma câmera que não se preocupa em ser estável, mas sim uma câmera que quer tremer. Assim como a steadicam surge, no final da década de 1970, como domesticação da mobilidade tremida exaltada pelos cinemas novos – busca por uma estabilidade mais palatável que nasce de chave próxima à do telejornalismo de hoje – a adoção da câmera solta em [REC] vem não como fidelidade a um conceito, mas sim como aparência de uma impressão. Se há trinta anos atrás era preciso – para não entortar os labirintos delicados da platéia – aprender a mexer a câmera livremente sem assimilar todas as características desse livre movimento, o simulacro de realidade buscado pelo filme de Balagueró e Plaza associa a presença a esse balanço, exigindo que a câmera trema mesmo quando ela tenderia a uma maior estabilidade.
Essa frouxidão realizadora vai, aos poucos, se permitindo uma série interminável de desvios conceituais, da fita que registra magicamente seu próprio rewind feito na câmera, à “sofisticada” manipulação sonora que reforça os graves em pancadas de subwoofer, com drones e passeios em surround incondizentes às condições de realização buscadas pelo filme. Não estávamos a ver um material bruto? Não havia a promessa de, com a escuridão recortada pelo sun gun na redução de visibilidade do vídeo, se trabalhar um material que imprimisse uma aparência de realidade, onde a falta de acabamento deveria ser a maior fonte de sua força? Aos poucos, a dupla espanhola vai deixando muito claro estar disposta a sacrificar qualquer unidade de conceito em nome de uma flácida eficiência que, fruto desse descompasso, vai minando qualquer possibilidade de envolvimento contida nessa estrutura anterior, nessa ambiciosa tagline. [REC] começa a se parecer enormemente com a filmagem de um brinquedo de parque de diversões – experiência esvaziada pela impossibilidade de presença, pela destruição daquilo que a mantém de pé.
Se logo aceitamos que o filme foi trocado por um conceito, [REC] revela uma superficialidade ainda mais aguda, pois seus criadores parecem atraídos apenas pela aparência extrema desse conceito, sem perceber que sua eficiência não depende de recursos funcionais em outros universos, mas sim de uma fundação particular, sólida e profunda. Ao destruírem a única frase de efeito que tinham, eles acabam oferecendo ao espectador uma assoberbada folha de papel em branco.
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