Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2008.
O mundo é uma laranja
A Culpa é do Fidel começa com um grupo de crianças à mesa de um enorme jardim. Entre elas está Anna (Nina Kervel), protótipo de dama que ensina seus coleguinhas a comer frutas usando garfo e faca. Enquanto as outras crianças lutam – com a falta de jeito típica dos primeiros anos – com os talheres, Anna se orgulha dos pedaços perfeitamente simétricos em que fatiara sua laranja, e olha para a falta de habilidade dos outros com um professoral desdém. Se nessa primeira seqüência a garota é professora, a laranja é a fruta que retornará como metáfora da riqueza do mundo quando, na segunda metade do filme, um dos amigos comunistas de seu pai (Fernando, interpretado pelo italiano Stefano Accorsi) tenta ensiná-la os princípios do comunismo. “Algumas pessoas querem ficar com a laranja inteira”, diz, “mas nós acreditamos que ela deva ser repartida”. Ele parte a fruta com as mãos e oferece um dos pedaços a Anna, que o devora sem reservas ou elegância.
Esse tipo de repetição se torna um padrão ao longo da hora e meia da estréia na ficção de Julie Gavras, filha do grego Costa Gavras. Se o título do filme já indica o conflito pelo qual passará a jovem protagonista, a diretora não se furta a reiterá-lo plano após plano: assim como George Orwell escolhe animais para reduzir as questões políticas que metaforiza em A Revolução dos Bichos a valores de convivência, Julie Gavras toma o ponto-de-vista de uma criança para travestir uma oposição de sistemas políticos com nomes atraentes como solidariedade, compaixão e justiça. Mas Anna é uma garota esperta, e garotas espertas não se contentam com explicações parciais. Para ser convencida da beleza do rumo político escolhido pelos pais – o mesmo que a tirara de uma casa enorme, com um bonito jardim e uma criada de quem gostava – eles precisarão de mais do que meias-palavras.
Isso não significa, porém, que essas palavras não serão sempre as mesmas. Pois A Culpa é do Fidel logo deixa bastante claro não estar interessado em passar da página três, mas sim de ler essas três primeiras páginas ao espectador inúmeras vezes, garantindo o pleno entendimento de sua proposta. Não existe, portanto, espaço para respiros, para o olhar se deter com interesse no universo de seus personagens, para que o mundo gire determinado por qualquer coisa que não as relações de causa e efeito: se uma amiga vai dormir na casa de Anna, esteja certo que isso servirá narrativamente por seu estranhamento diante da educação liberal da família, ou da comida preparada pela refugiada vietnamita que os pais da amiga decidiram abrigar. Se Anna gosta de natação, é para sermos ensinados de que ninguém ganha um revezamento sozinho. Se gosta de brincar de loja, é só para fazer contraponto ao discurso dos amigos de seu pai.
Esse total desinteresse da diretora pelo universo que filma, em troca de uma preocupação obsessiva com a mensagem de seu filme, faz de A Culpa é do Fidel uma experiência bastante aborrecida. Pois se o universo infantil fascina muito por sua autonomia e imprevisibilidade (basta olharmos para Estamos Bem Mesmo Sem Você – filme que divide as salas da cidade com este A Culpa é do Fidel), essa pulsação é eliminada do filme em nome de um raciocínio político que, embora pareça sincero, é extremamente redutor. Em filme onde até os contrapontos são óbvios, é incontornável a sensação de que seus personagens não sobrevivem como mais que vozes das convicções da diretora.Em vez de alguns minutos de Anna sem dormir pela respiração alta do irmão François (Benjamin Feuillet – que garante os poucos sorrisos ao longo da projeção), teremos uma seqüência inteira da garota perdida na fumaça das bombas de gás lacrimogêneo que reprimiam a passeata em que seu pai a levara. Em vez de um pouco mais de tempo dedicado às brincadeiras das crianças, ganharemos mais um par de piadas sobre barbudos vermelhos. Em vez de a acompanharmos, no plano final, pela misteriosa solidão de uma nova escola, veremos Anna ser logo convidada pelos novos colegas a brincar em um mundo onde meninas e meninos se misturam, onde os uniformes berram em cores que não combinam, e onde a multidão deixa de ser assustadora e se torna, de fato, acolhedora. Se são valores blindados a quase qualquer tipo de condenação, Julie Gavras os defende de maneira tão inverossímil e ingênua que os condena à impraticabilidade.