Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2008.
Explorando o explorador
Embora a campanha de publicidade venda Trovão Tropical como uma paródia aos filmes de guerra, não demora mais do que alguns minutos para o espectador se perceber diante de um filme radicalmente diferente das franquias do deboche produzidas em série por Hollywood. Começamos a projeção com quatro peças falsas: um comercial de blaxploitation contemporânea; um trailer de uma franquia de filmes de ação capitaneada por um Ben Stiller bombado, ator que arrasta seu nome para muito além do sucesso; outro de uma “comédia de peidos” sobre uma família obesa em que todos os personagens são protagonizados por Jack Black; e um terceiro, de um drama gay em que os olhos azuis de Robert Downey Jr. são valorizados como a mais gorda isca de lágrimas.
Passamos, enfim, ao início “real” de Trovão Tropical, com os mesmos quatro atores principais das peças falsas, e somos bombardeados com imagens já bastante familiares: cabeças que explodem, montanhas de tripas expostas que um soldado tenta devolver ao seu abdome, um fuzilamento que não mata, e uma cena pesadamente dramática – mas, sintomaticamente, à vontade – em meio a todo aquele grotesco. Quando o personagem de Ben Stiller não consegue acompanhar a cachoeira de lágrimas derramada por Robert Downey Jr., ouvimos um “corta!” no extracampo, e somos instaurados em uma diegese metalingüística.
Se no projeto Grindhouse (2007) os trailers falsos colocavam o espectador em um certo estado de experiência, aqui eles – embora curiosamente tenham sido cortados em alguns cinemas brasileiros – são essenciais à compreensão dos propósitos do filme, pois estabelecem uma óbvia conexão entre construções tão distintas: são todas imagens pornográficas. Pornográficas, aqui, não no sentido tradicionalmente erótico do termo, mas sim na definição godardiana; cenas que, em seu desespero de seduzir o espectador, saltam as mais extremas barreiras da ética e da moral, em um exercício de exploração (barrigas abertas, planos ginecológicos de dançarinas de hip hop, construções cênicas que reforçam todo tipo de preconceito, produções mantidas vivas em grifes com compromissos estritamente industriais, e olhos azuis que choram lágrimas absolutamente ultrajantes). Ao levar a exploração a níveis de visível exagero, Ben Stiller parece reforçar, a cada plano, que a paródia está apenas um grau acima de uma obscenidade extrema aceita e encorajada por estúdios e espectadores.
O que Stiller fará na hora e meia restante de seu filme é levar toda imagem ao absoluto paroxismo. Seja pela cultura da celebridade, pela relação arte-comércio, pelos atalhos para o Oscar (o polêmico filme sobre um jovem com deficiência mental) pelo deslumbre com o método de Stanislavski (o genial personagem de Robert Downey Jr. – ator tão dedicado ao método que, para melhor compor um personagem, passa por um tratamento para se tornar negro) ou pela obsessão arquivista totalizadora do consumidor contemporâneo (a central discussão sobre o TiVo – sistema que armazena programas de tv em um disco rígido para que o espectador possa vê-los fora das grades de programação dos canais). Stiller explode todos os limites éticos da construção da imagem para, a partir dessa destruição, tirar o espectador de uma posição de conforto em que ele é freqüentemente abusado.
Naturalmente, um filme com proposta como essa passa por, no mínimo, dois dilemas bastante perceptíveis: o primeiro é a possibilidade de atacar quem lhe alimenta, produzindo uma crítica aberta ao atual sistema de estúdios, dentro desse mesmo sistema. Nesse sentido, não só Hollywood é colocada em uma posição curiosa – a de ser indústria tão dedicada que até mesmo uma crítica aberta a seus procedimentos pode ser encorajada; desde que, é claro, dê lucro – mas também os próprios atores que trabalham dentro desse sistema.
Não à toa, uma das operações mais surpreendentes em Trovão Tropical é a maneira como um ator encarna – sempre com ironia – traços da biografia de seu companheiro de cena: Jack Black tendo crises de abstinência de drogas ao lado de Robert Downey Jr.; Ben Stiller em seu momento Tom Cruise à Nascido em 4 de Julho (1989); Downey Jr. e sua dedicação ao método, contracenando com Nick Nolte; Tom Cruise em explosão de nervos não muito diferente da tão famosa cena criada em uma entrevista no programa da Oprah. Estaríamos diante de atores realmente capazes de tamanha auto-ironia, ou apenas vendo profissionais da imagem buscando um novo sucesso de bilheteria, mesmo se isso lhes custar passar alguma vergonha pública? Mais uma vez, não há respostas fáceis…
O segundo dilema vem da velha questão que atormenta toda paródia: ao levar a encenação de atrocidades a um novo nível de absurdo, não estaria, o filme, reforçando-a por simplesmente colocá-la na tela? Será que a melhor maneira de refletir sobre barrigas abertas é filmar uma quantidade de tripas ainda maior saindo delas? Apesar de essas perguntas não serem respondidas em tela, Trovão Tropical realiza, ainda, uma outra operação bastante surpreendente: ao buscar uma noção de realidade exagerada, a produção do filme joga os atores no meio da selva para, sem qualquer tipo de orientação ou comunicação, retirarem do drama real algum sofrimento que imprima na película (e aí, os paralelos com o cinema de Werner Herzog e toda a tradição de exploração do sofrimento pela cena são bastante claros). Nesse meio tempo, o diretor se mata, acidentalmente, pisando em uma mina e os atores são inseridos dentro de uma guerra real, entrando em território dominado por narcotraficantes.
Ao explodir, literalmente, a responsabilidade realizadora em nome de uma impressão de real, Stiller faz com que a ficção cruze, de fato, as fronteiras da vida. Embora não se ponha a responder o dilema de sua própria representação (deveria?), Trovão Tropical é inteligente o suficiente para assimilá-lo à construção do filme: a encenação é um ato de trazer à vida, mas não se deve confundir uma coisa com a outra. É isso que acontece com o personagem de Ben Stiller e seu “filho” vietnamita, e as conseqüências não poderiam ser mais claras: ele é esfaqueado nas costas. Mas, claro, acaba ganhando o Oscar por isso.