Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2008.
As lacunas da memória
Há uma preocupação constante em evidenciar Valsa com Bashir como uma lembrança esburacada: Ari Folman, diretor e personagem, passa o filme tentando se lembrar de sua participação, como soldado do exército israelense, no massacre ao povo palestino acontecido no Líbano, em 1982. A premissa, porém, é a do esquecimento, pois toda fala de Folman atravessa as lacunas da memória, e a necessidade natural de preencher esses vazios com fatos inventados, com reinterpretações. A animação viria então como recurso mais evidente de um processo que já estaria presente no nascimento do documentário, com os filmes de Robert Flaherty: a reencenação. Assim como o Flaherty de O Homem de Aran (1934), por exemplo, Folman parte de um convívio, de uma experiência documental, e reconstrói um discurso impressionista dessa convivência a partir da reencenação. A diferença maior estaria na intensidade das tintas: se, nos filmes de Flaherty, a reencenação é absorvida pelo próprio discurso (por vezes gerando verdadeira aparência de ficção – como no clássico Louisiana Story, de 1948), em Valsa com Bashir ela se divide entre a representação direta do processo documental (a animação das entrevistas e depoimentos) e criações livres, diria até poéticas, a partir das imagens evocadas pelos depoentes.
O filme de Folman é mais feliz em uma linha muito tênue entre a reencenação livre e a fidelidade ao discurso: embora imagens como a sequência em sonho da mulher nua, que vem resgatar um soldado de um barco, sejam extremamente eficazes; momentos em que a subjetividade se torna por demais literal – como a valsa entre as balas que dá título ao filme – parecem ainda insuficientes como imagem, em movimento em que a recriação é menos eficiente do que a imagem imaginada, apenas evocada na banda sonora. Nesse sentido, Valsa com Bashir faz lembrar, imediatamente, uma fala do cineasta Jia Zhang-ke, em entrevista à Cinética: “Alguns dos sentidos de realidade não podem ser expressados pela mera observação do real. Em muitos momentos, a intervenção ‘surrealista’ é muito mais verdadeira para essa expressão do mundo”.
Ari Folman evidencia a criação como parte integrante de seu processo documental, muito embora seu objetivo ainda seja recuperar a concretude de uma memória esquecida, vaporosa, insustentável. A partir da recriação em animação, o documentarista tenta dar conta de uma fatia pessoal de uma história que perdera sua particularidade entre os discursos e as imagens oficiais. Não à toa, o uso de material filmado bruto, ao final do filme, corta laços dos dois lados: ao mesmo tempo que chega, enfim, à visualidade concreta, esse registro – de imagens tão conhecidas e redundantes – é frustrante e insuficiente para dar conta de sua experiência. Nesse movimento pendular contínuo, talvez o centro mais interessante se encontre em uma fala surgida na sessão de psicanálise de Folman: ver a guerra como um filme não seria, também, uma forma de não participar dela?
Na cobertura do festival de Cannes para a Cinética, Eduardo Valente escreveu que, mais proveitoso do que se interessar por Valsa com Bashir como um documentário de animação, seria aproximar-se dele como obra de auto-ficção – termo oriundo da literatura, mas que serviria para caracterizar filmes tão distintos quanto See Heaven (1995), de Naomi Kawase, e Santiago (2007), de João Moreira Salles. Sem discordar de sua afirmação, a impressão surgida do contato com Valsa com Bashir é de que, mesmo como produto de auto-ficção, o filme responde, sim, à seara documental, pois é dessa relação que surgem suas mais marcantes preocupações. Se as fronteiras entre documentário e ficção são discussão embolorada e difusa, Valsa com Bashir a revitaliza ao se mostrar preocupado com uma questão essencialmente documental: o compromisso ético com suas personagens; a idéia de que, para além do respeito ou da fidelidade ficcional, existem, no documentário, pessoas que seguirão vivendo e que terão suas vidas afetadas diretamente pela maneira que suas individualidades são organizadas pelo realizador. Mais do que a sempre presente manipulação do discurso, é esse compromisso ético que estabelece, talvez, a maior diferença entre o documentário e a ficção, e, para além de seu sucesso, ele é uma preocupação constante para Ari Folman. Entre as evidências mais claras, está a opção de substituir alguns dos rostos e vozes originais por atores, levando a crer que Ari Folman estabelece, sim, um pacto com suas personagens, mesmo com a reinterpretação do discurso pela construção em animação. “Tudo bem se você desenhar, desde que você não filme”, diz uma das personagens.
Como questão metalinguística, Valsa com Bashir se revela fruto de uma lucidez extrema; um discurso onde toda fala é problematizada, e onde toda opção estética é logo justificada, amarrada em um raciocínio maior, em um roteiro anterior tão necessário para a animação, mas que dá uma certa frieza às suas próprias descobertas. Ao mesmo tempo em que a reconstrução dá conta de um universo, nos exclui de outros – no que a supressão das vozes originais, substituídas por reencenações dubladas, parece ser a mais significativa – mas o faz sempre com bastante rigor e consciência. Uma vez estabelecidas as bases, seu desenvolvimento oscila entre o interesse e o fastio, perdendo o espectador quando repisa as mesmas questões, mas ganhando algum sopro de vida sempre que uma nova peça é encontrada – ou inventada; mesmo que, milagrosamente, seja do tamanho exato do buraco a ser tapado.