Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2008.
A imagem selvagem
Em dado momento de Sombras de Goya, um evento histórico recém passado pelas telas de cinema é mencionado: Luís XVI, então Rei da França, foi encontrado e decapitado pelas tropas revolucionárias. Trata-se do final nunca visto de Maria Antonieta (2006), filme de Sofia Coppola sobre a esposa de Luís XVI, que acompanha o casal até a tentativa de fuga para Montmédy. A menção ao episódio – apropriada pelo parentesco do Rei da França com Carlos IV, Rei da Espanha que acolhe Sombras de Goya – acaba gerando um paralelo importante para se aproximar das inquietações que guiam o último filme de Miloš Forman: como pensar cinematograficamente a História sem responder à carga de preconceito armazenada em séculos de narrativa visual? Ou melhor, se não é possível lavar a imagem desse acúmulo de significados, como construir imagens novas que possam carregar outras nuances dessa mesma História?
A resposta que Forman filma é contundente: para pensar a História é preciso problematizar a imagem. Mais que isso, é preciso trazê-la para o centro da narrativa. Pois se Sofia Coppola problematiza a preservação de preconceitos históricos em sua própria representação (na imagem, em si), Forman – que co-assina o roteiro com Jean-Claude Carriere – faz da natureza da construção da imagem o centro de seu filme. Antes de repensar um repertório imagético tão definido, é preciso lembrar que esse repertório é, com efeito, composto de imagens. Antes da transgressão, a reflexão sobre a natureza do que está para ser transgredido. É preciso pensar a criação de imagens e, sobretudo, pensar a posição de quem as cria.
Os créditos iniciais rolam sobre uma série de impressões de Francisco Goya (aqui interpretado por Stellan Skarsgard) tidas como subversivas pelos membros do Santo Ofício. A relação do clero com o pintor espanhol é ambígua: ao mesmo tempo em que a instituição reprova suas intenções políticas, ela reconhece sua posição artística-social enquanto retratista escolhido pela família real. É por conta desse status que o padre Lorenzo (Javier Bardem) encomenda seu retrato ao pintor, logo após sugerir o endurecimento do processo de Inquisição motivado pelas impressões por ele assinadas. Goya, por sua vez, divide seu tempo criativo entre as obras de encomenda e as criações livres. Entre essas está um retrato de Inês Bilbatua (Natalie Portman), musa cujas feições se desprendem para formar os rostos dos anjos que ele pinta em igrejas. É desse encontro de duas imagens (os quadros de Lorenzo e Inês) que Forman tira o substrato de seu recorte histórico: acompanhando marcações de cena dessas vidas pelos olhos de Goya, o diretor usará novas imagens para rachar uma história de peças encaixadas por imagens.
O aperto do processo inquisitivo sugerido por Lorenzo levará Inês ao Santo Ofício: após ser vista negando carne de porco em um jantar, ela será torturada e forçada a confessar uma suposta inclinação ao judaísmo. Intercedendo em favor da moça (embora de maneira sempre parcimoniosa), Goya leva o padre Lorenzo a um jantar na casa da família Bilbatua. Lá, o pai de Inês (Tomás Bilbatua, interpretado por José Luis Gómez) submete o padre a um processo de tortura semelhante ao usado pela Igreja. Sua intenção é provar que, para evitar a dor e a morte, um ser humano é capaz de confessar mesmo os mais descabidos absurdos. Lorenzo é libertado após assinar um documento dizendo ser um macaco aproveitador; documento que o motivará a lutar em vão pela libertação de Inês e que, uma vez divulgado, o obrigará a fugir. O padre Lorenzo é condenado pela Igreja, mas como não é encontrado, é o retrato feito por Goya que ganha a fogueira, em praça pública. É a imagem quem sofre.
Assim como as imagens são vítimas da violência da intolerância, logo o direito da intolerância passa a ser clamado por outros sujeitos: vêm a Revolução Francesa, a barbárie, a Guerra Civil Espanhola, os estupros, as inquisições de outros algozes. A História, enfim. Para filmar o caos, Forman parece buscar eloqüência mais apropriada no comportamento animal: enquanto as tropas francesas tomam as ruas da Espanha, seu olhar se deterá sobre um galo que responde ao barulho dos tiros, um cavalo que é abatido com seu cavaleiro, um cachorro que não sabe para onde correr. Nenhuma intenção de naturalismo: Forman não filma os animais como aproximação do comportamento dos homens. Ao contrário, sua natureza é perturbada pelo caminhar histórico, seu ritmo é atropelado pelas aberrações da civilização, sua beleza selvagem é agredida pela alternância de poderes. Essas imagens são usadas em inserts muito próximos aos que ganham as pinturas de Goya desse período. Não estaria Miloš Forman ressaltando, com essa aproximação, o caráter selvagem das imagens, seu potencial bruto que pode ser usado para eternizar preconceitos? Não faria o diretor, dessa maneira, ressaltar a potência selvagem da imagem, que é domesticada para contar a História sob um determinado ponto-de-vista?
Pois paralelamente às imagens corre sempre um extra-campo de possibilidades. “Se o campo é a dimensão e a medida espaciais do enquadramento”, escreve Jacques Aumont em O Olho Interminável, “o fora-de-campo é sua medida temporal, e não apenas de maneira figurada: é no tempo que se manifestam os efeitos do fora-de-campo. O fora-de-campo como lugar do potencial, do virtual, mas também do desaparecimento e do esvaecimento: lugar do futuro e do passado, bem antes de ser o do presente”. O fora-de-campo das imagens possíveis, das Histórias possíveis que atormentam como os fantasmas do título original de Sombras de Goya. O fora-de-campo onde o padre Lorenzo irá aderir a Revolução e retornar para lutar contra a tirania da Inquisição que um dia ajudara a reforçar (para, depois, ser novamente perseguido por ela). O fora-de-campo dos calabouços da Igreja onde Inês Balbitua, a mulher-imagem de Sombras de Goya, perderá a beleza e as cores. O fora-de-campo onde, pouco antes da fuga, padre Lorenzo e Inês geraram uma filha.
A brutalidade da imagem, portanto, deve ser admitida. Ao fim da Guerra Civil, Francisco Goya compensa a surdez (que, segundo parte dos estudiosos da vida do pintor, poderia ter sido causada pelo chumbo contido nos pigmentos que usava em suas telas) com um olhar cada vez mais apurado. Imerso em um mundo de imagens, até mesmo a fala dos outros se torna elemento visual: em decupagem de diálogo bastante impressionante, as respostas que Goya vê são apenas closes de lábios que se mexem (e é preciso destacar a edição de som, que isola os ruídos produzidos pelo pintor em um mar de absoluto silêncio de outros). A fala é feita imagem. A imagem que é capaz de ensurdecer, de perpetuar unilateralidades, e de destruir a beleza de um anjo: Inês é libertada com a Revolução, mas em quase nada parece com a musa que enfeitiçara Goya 15 anos antes.
No início do filme, após ver seu retrato pintado por Goya, o padre Lorenzo diz que, se cruzasse com aquele homem na rua, não o reconheceria. Mais tarde, o retrato da rainha – que o pintor considera belíssimo – não receberá mais que um silêncio de desaprovação de sua modelo. É essa ambigüidade e essa problematização da imagem que interessam Forman em Sombras de Goya. Se pensarmos em seu projeto de cinema, a preocupação é coerente: o que fariam filmes como O Mundo de Andy (1999), Amadeus (1984), Hair (1979), ou O Povo Contra Larry Flint (1996) que não problematizar, a todo momento, a imagem oficial cristalizada pela História?
Esse auto-questionamento, porém, passa longe de penitência. Pois se Forman é tomado pela necessidade de pôr em dúvida uma certa iconografia histórica, é por acreditar nas possibilidades eliminadas no extra-campo do tempo (pois o extra-campo assimilado traz, consigo, um fora-de-campo marginalizado até mesmo desse extra-campo). Não é à toa que, para falar disso, faça-se olhos de um criador de imagens como Goya, sem nunca mimetizar suas pinceladas com a câmera. Os interesses, aqui, são outros. As imagens – potência bruta e selvagem de significados – são destruidoras, sim. São capazes de determinar líderes e seguidores, vitoriosos e fracassados. Mas são, também, capazes de rearranjar conservadores e libertários, belos e feios, vivos e mortos. São capazes de, como por milagre, fazer reviver Inês em sua filha (também interpretada por Natalie Portman), para que a força da beleza da musa possa, mais uma vez, deleitar os olhos de quem a eternizou.