Displacing identity II
In Claire’s Camera (2017), Hong Sang-soo’s talent for creating small moments of beauty and sustaining a productive friction between what’s in front of the camera and the off-screen space creates a manifold experience that is frequently pushing the spectator out of the film in order to bring them back in with a different perspective. It is, after all, a film about how the presence of a camera can change the course of things both in the future and in the past. But the film’s most fertile diegetic disjunctions are both more discreet and less forgiving to the integrity of the fourth wall.
One layer of this friction is created by the film’s location: Claire’s Camera is not only set during the Cannes Film Festival but was actually shot during its 2016 edition. Yet, the references to this context are only indirect: even though all the characters are in town for the festival – and the most expressive use of this temporary displacement is with Jeon Man-hee (Kim Min-hee), who gets fired from the film sales agency she works at halfway through the event and becomes a wandering tourist for the rest of her time there – the film shows no trace of the bloated spectacle that takes over the Croisette every May. It is not only Claire (Isabelle Huppert) and her camera who favors portraying strangers with her Polaroid over turning her gaze to the red carpet; Hong Sang-soo’s camera itself seems moved by the conviction that any possibility of life can only be in the opposite direction. As a counterpoint that does not acknowledge the legitimacy of the point, the politics behind the director’s small-scale production system – a not-so-great camera on a tripod; basic direct sound; a few actors in simple locations; a very expressive dog – gain tremendous eloquence. From the casualness of its style to its running time (an awkward 69 minutes) Claire’s Camera is the quintessential anti-Cannes Cannes film; it is all the contradictions of institutional critique in a nutshell.
The other layer created in this friction between the world of the film and the world in which the film exists involves its most evident production value: Isabelle Huppert. While Huppert’s presence is once again used by Hong as a disruptive element – much like they did in what’s probably his weakest film to date, In Another Country (2012) – there is one specific moment where the actor transcends the character, inviting the viewer to see through the film. Killing time at a bookstore (and there’s a beauty in how the characters are always killing time at an event in which time, with its famously long lines and its early morning screenings, is a currency), director So (Jung Jin-young) asks Claire (Huppert) to read a poem by Marguerite Duras. She grabs the book from his hand and recites:
I want to talk about someone
About a man of twenty-five at the most
He is a beautiful man
who wants to die
before being marked by death.
You loved him
More than that.
Her pitch drops half an octave, her voice moves from her (English) head to her (French) chest, and you see that eccentric lady with the camera turn into one of the greatest living actors. At that moment, Claire becomes Huppert, the film folds over itself one more time, and the viewer – with the benefit of subtitles that are not granted to the foreign character – is implicated in this liminal position where every boundary seems fluid yet, paradoxically, impenetrable.
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A identidade deslocada II
Em A Câmera de Claire (2017), que entra em cartaz hoje em diversas capitais do Brasil, o talento habitual de Hong Sang-soo em criar pequenas brechas de beleza e manter uma fricção produtiva entre o que está em frente da câmera e o espaço fora de quadro cria uma experiência em múltiplas camadas que frequentemente retira o espectador do filme para em seguida trazê-lo de volta com nova perspectiva. Afinal, é um filme sobre como a presença da câmera pode alterar o curso do futuro e do passado. Mas as disjunções diegéticas mais férteis são, concomitantemente, mais discretas e mais impiedosas com a integridade da quarta parede.
Uma camada dessa fricção é criada pela locação: A Câmera de Claire não só se passa durante o Festival de Cinema de Cannes, mas foi ele próprio filmado durante a edição de 2016 do festival. Porém, as referências a esse contexto são apenas indiretas: apesar de todos os personagens estarem na cidade por conta do festival – e o uso mais expressivo desse deslocamento temporário é com Jeon Man-hee (Kim Min-hee), que é despedida de seu emprego em uma agência de vendas de filmes no meio do festival, e torna-se uma turista errante pelo resto de sua estadia – o filme não ostenta traços do espetáculo inchado que invade a Croisette em Maio. Não é somente Claire (Isabelle Huppert) quem usa sua câmera para retratar estranhos, em vez de mirar o tapete vermelho; a câmera de Hong Sang-soo parece também movida pela convicção de que qualquer chance de encontrar vida naquele espaço só pode estar na direção oposta. Feito um contraponto que não reconhece a legitimidade do ponto, a potência política da pequena estrutura de produção desenhado pelo diretor – uma câmera não muito boa em um tripé; som direto sem ornamentos; um punhado de atores em locações simples; um cachorro extremamente expressivo – ganha enorme eloquência. Da casualidade de seu estilo à própria duração (apenas 69 minutos), A Câmera de Claire é o mais anti-Cannes dos filmes de Cannes; é o encapsulamento de todas as contradições da arte como possibilidade de crítica institucional.
A outra camada produzida nesta fricção entre o mundo do filme e o mundo em que o filme existe envolve seu mais evidente valor de produção: Isabelle Huppert. Embora a presença de Huppert seja novamente usada por Hong como elemento perturbador – semelhante a A Visitante Francesa (2012), provavelmente o filme mais fraco do diretor até hoje – há um momento específico em que a atriz transcende a personagem, convidado o espectador a ver através do filme. Enquanto matam tempo em uma livraria (e há uma beleza na forma como os personagens estão sempre matando tempo em um evento em que o tempo, gasto em filas celebremente intermináveis e sessões cruelmente fincadas nas primeiras horas da manhã, é moeda de extremo valor), o diretor So (Jung Jin-young) pede a Claire (Huppert) que leia um poema de Marguerite Duras. Ela pega o livro e recita:
Quero falar sobre alguém
Sobre um homem de no máximo vinte e cinco anos
Ele é um homem bonito
que deseja morrer
antes de ser marcado pela morte.
Você o amou
mais do que isso.
Seu tom desce meia oitava, sua voz sai de sua cabeça (em inglês) para seu peito (em francês), e você vê aquela senhorinha excêntrica com uma câmera se transformar em uma das maiores atrizes vivas. Naquele momento, Claire se torna Huppert, o filme se dobra sobre si uma vez mais, e o espectador – com o benefício da legenda que não é dada ao personagem estrangeiro – é implicado nessa posição liminal onde toda barreira parece fluida e, paradoxalmente, ainda assim impenetrável.