Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2011.
Um novo fim
Por questões temáticas, e pela proximidade de lançamento, é inevitável que 4:44 Last Day on Earth levante (como já tem levantado) paralelos com o Melancolia (2011), de Lars Von Trier. Para constatar essa proximidade, porém, não é necessário sequer assistir ao filme de Ferrara, com seu título-sinopse: como viver o último dia de vida, sabendo que o mundo acabará às 4:44 da próxima madrugada? Até aí, ressalva-se, não há nada de realmente novo. Qual filme de Abel Ferrara já não carregava em si algo de plenamente apocalíptico? Seja na fragmentação imagética da fé em Maria (2005), no cabaré que definha em Go Go Tales (2007), no cerco que fecha incessantemente em Body Snatchers (1993), ou no paraíso decaído de Bad Lieutenant (1992), Abel Ferrara vem, há anos, filmando novas versões de um mundo em decadência, se desintegrando a cada fotograma. 4:44 talvez seja apenas o seu filme mais literal sobre um tema que o movimenta desde o princípio de sua carreira, colocando-nos frente a frente com o fim. Mas, no cinema de Ferrara, a consciência do fim sempre foi uma questão de princípio.
Por outro lado, há proximidades insuspeitas, e bastante palpáveis, entre este novo filme de Abel Ferrara e outros trabalhos recentes de diretores bem mais próximos dele, tanto por geografia quanto por geração. Com Road to Nowhere (2010), de Monte Hellman, Ferrara compartilha a necessidade de retratar um mundo povoado por toda sorte de virtualidades – Skype, iPads, interfones com vídeo, monitores dos mais variados formatos e tamanhos – em uma coleção de acessórios que chegará justamente como arauto do fim do mundo (e o papel dado ao telejornalismo no filme é de saborosíssima ironia). Em dado momento de 4:44, surge uma fala do Dalai Lama – entre vários outros gurus, das religiões ou das ciências, que explodem pelo sem número de telas do apartamento do casal protagonista – dizendo que o homem parecia ter perdido controle sobre a tecnologia; a fala, porém, chega ao filme, às personagens e à história por um monitor de vídeo. Não há, portanto, um julgamento pessimista ou otimista direto dessa nova organização do mundo; como em Road to Nowhere, ela é parte tão integrante das vidas das pessoas que é necessário passar por ela – e pelos novos estatutos de relações que elas impõem – para se conhecer as angústias das personagens.
Mas se no filme de Hellman essa explosão de registros é orquestrada para a produção de um sentido – mesmo que esse sentido aponte para sua dimensão de necessária imprecisão – no filme de Ferrara não parece haver espaço para nada além do caos. 4:44 acontece todo no limite entre a aceitação e o desespero: o mundo vai acabar, não há nada que se possa fazer para evitá-lo, mas essa resignação forçada não virá sem traumas. É nesse sentido que o filme se aproxima, por vias bastante curiosas, de A Árvore da Vida (2011), de Terence Malick. Pois diante do abismo, Ferrara parece dividir com Malick a intenção de retomar os temas realmente grandes e nobres da humanidade, mesmo que tão fora de moda: de onde viemos? Para onde vamos? Por que estamos aqui? Qual o sentido da vida? Qual o sentido da arte? Mas enquanto o filme de Malick vai trabalhar a partir da chave heideggereana da “origem” – que é em si misteriosa – o filme de Ferrara parte da concretude inevitável do fim. Olha-se para frente ou para trás; em ambos os fins, há apenas a certeza de um intransponível mistério.
Enquanto Malick afirma a impenetrabilidade inevitável do milagre de origem, as personagens de 4:44 se dividem entre a vontade de ver e a de não ver, partidos entre a autonomia de esperar o fim do mundo com os olhos bem abertos e sóbrios (sempre uma questão no cinema de Ferrara), ou a de dar um fim à própria vida antes que o mundo o faça por você. Diante da fragmentação completa de crenças e convicções – na imagem, na palavra, na existência, na permanência – que anuncia o fim do mundo, o que sobra é uma tentativa infrutífera de, uma vez que é impossível organizar o caos, se definir a partir da soma desorganizada de seus fragmentos. Cisco (Willem Dafoe) mata tempo com a polifonia religiosa e a tentativa de armazenar o que lhe resta do mundo, mesmo sabendo que não há legado a se deixar. Ainda assim, Tina (Natasha Lyonne), protagonista e dupla musa (de Dafoe e de Ferrara, que lhe reserva ilhas de beleza em um filme bastante torto e mal ajambrado), aguardará o fim do mundo colocando tinta e mais tinta sobre uma tela estendida ao chão. Por que pintar um último quadro se ele desaparecerá com a humanidade no dia seguinte?
Mas naquele movimento de cobrir uma camada de tinta com outra, em algum momento surge uma imagem figurativa, que pode ser compreendida a partir da soma de todas aquelas camadas. Como no filme de Ferrara, a imagem – no sentido goetheano do termo, de uma impressão geral que se espalha pela integridade do corpo da obra de arte e que só pode ser apreendida de sua totalidade – do quadro se revela justamente pelo caos, pela necessidade desesperada de se colocar plano sobre plano para, com isso, se chegar a uma imagem compreensível. Mas essa imagem – sintetizada no filme pelo Ouroboros, o animal mitológico que se devora pelo próprio rabo – não aponta para lugar algum que não a impenetrabilidade indiferente do começo e do fim. Nessa dúvida, a trajetória do personagem se irmana à dos espectadores desse mundo-filme, pois, como ele, não teremos muito o que fazer a não ser nos deleitarmos com a brutalidade das experiências, buscando algo de significativo entre as duas pontas.