Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2016.
Os filmes de Bette Gordon e James Benning
Entre 1974 e 1975, Bette Gordon e James Benning realizaram três filmes de direção partilhada: Michigan Avenue (1974); i-94 (1974) e The United States of America (1975). Embora o encontro tenha se estendido a um breve casamento e uma filha, a obra conjunta totaliza não mais de 35 minutos, sendo que 27 deles são do média-metragem de 1975. Benning seguiria com um trabalho extremamente profícuo e inclassificável dentro do cinema americano que há não muito tempo foi pauta aqui na Cinética, com filmes que expandiam algumas das questões já presentes nesta tríade em dupla. Gordon dedicaria mais alguns anos ao cinema estruturalista antes de enveredar de vez pelo longa-metragem narrativo de ficção, a partir de Variety (1983), em produção que perdura até hoje, embora de ritmo bem menos frequente. Há, porém, nestes três filmes conjuntos, algo de específico que permanece isolado do trabalho posterior dos cineastas, ressaltando o encontro criativo como uma espécie de projeto paralelo – em termos propositadamente musicais – que encontrou suas próprias questões e desenvolveu a linguagem capaz de endereçá-las. A eloquência dessa especificidade se impõe não só como marco central para o contexto hoje historicamente delimitado como o cinema estruturalista de Chicago, mas também como um possível elo perdido que desdá alguns nós do presente.
A despeito do que se poderia pensar a partir de ambas as trajetórias porvir, essa especificidade não se dá em uma possível encruzilhada entre o estruturalismo e o cinema narrativo – embora a idéia de “drama” seja bastante central. Em fala de Bette Gordon que acompanhou a exibição da restauração dos filmes no Anthology Film Archives, em Janeiro de 2016, ao mesmo tempo em que ficou clara sua relação com seus trabalhos estruturalistas como um período de “estudos”, de “ensaios” (novamente, em conotação mais musical do que literária), ficou igualmente cristalino seu interesse agudo pela métrica e a matemática como disparadores criativos na montagem, em especial na truca (equipamento que permite a copiagem de uma película para outra, com alterações de tempo, enquadramento, efeitos, etc) – potência que norteia dois dos três filmes, e que é levada às últimas consequências em um de seus filmes posteriores, o excelente An Algorithm (1977), uma das melhores aproximações que o cinema já fez com a música e os escritos teóricos de Steve Reich.
Essa especificidade tampouco é questão meramente técnica: há, nestes filmes, procedimentos localizáveis até mesmo na produção mais recente de James Benning (principalmente a manipulação artificial do tempo em Faces, seu remake de 2011 do clássico de John Cassavetes) e na de Bette Gordon (a interpolação de fotogramas, por exemplo, reapareceria em An Algorithm; o uso do ruído distorcido como principal fonte sonora já aparecia no anterior Still Life, de 1972). Essa recorrência desvincula o traço de identidade conjunta também de uma descoberta ou pesquisa estritamente formais.
Em James Benning, fundamental livro de Barbara Pichler e Claudia Slanar para o Austrian Film Museum, o pouco documentado período de colaboração com Bette Gordon é destacado pela convivência das explorações dos processos de percepção caros ao cinema de Benning, com a predileção de Gordon pela política e teorias de cinema feministas da época. A leitura não é totalmente equivocada, mas a compartimentação tampouco dá conta de como os filmes fazem, desses dois pontos, epicentro de uma potência que transcende a conciliação. Diferente, o que parece especialmente peculiar neste conjunto de filmes é uma relação, sempre tensa, entre a precisão mecânica do dispositivo (cinematográfico, mas não só) e a linguagem que ele condiciona (traço distintivo do próprio estruturalismo) com a maleabilidade do corpo orgânico.
De maneiras singulares, os filmes tensionam o jogo possível entre um cinema de origem matemática com a sensualidade do corpo-câmera – dado que, em cineastas como Maya Deren, James Nares ou Paula Gaitán, se revela mola propulsora de outra vertente do cinema não-narrativo. O caminho encontrado, porém, não é exatamente o mesmo dos diretores citados: os três filmes são feitos com câmera fixa, em tripé, passando longe da encarnação em mise-en-scène free style da intervenção física direta do cineasta-câmera no mundo, como ficou característico, por exemplo, no melhor cinema produzido em Super8. Se o binômio natureza-artifício não é nada estranho ao trabalho individual de ambos os diretores, Michigan Avenue, i-94 e The United States of America tematizam essa tensão de maneira progressiva, como em uma relação que se aprofunda com o tempo, depurando uma distância de observação que, paradoxalmente, não neutraliza a intervenção direta na cena. Não à toa, dois dos filmes são literalmente encarnados pelos diretores: são os próprios James Benning e Bette Gordon que se colocam também frente à (ou, veremos mais tarde, dentro da) câmera.
A sensação de progressão de um encontro se dá, também, em uma relação marcada com o espaço que já se manifesta na escolha dos títulos: Michigan Avenue é a mais longa avenida de Chicago; i-94 é a grande rodovia que conecta a região dos Grandes Lagos ao meio-oeste americano, onde nasce James Benning; e The United States of America é o road movie que tem a insolência de carregar, em seu título, o nome do próprio país, com a multiplicidade federalista que lhe é fundadora. Há, portanto, um movimento que vai do micro – uma avenida; ainda sim, uma grande avenida, um micro que já nasce grande – para o macro – o país – mas que funda esses espaços em relação a experiências pessoais pontuais e localizadas, como (às vezes literalmente) uma câmera à beira da estrada. Se os filmes posteriores de James Benning apostariam, em grande medida, na expressividade da paisagem (natural e artificial), ela é quase neutra aqui. O espaço só existe como referencial objetivo de onde o sujeito está, como um mapa que, embora vasto, sirva apenas como superfície onde se possa marcar, com um alfinete, um ponto de vista finito e específico como foco de tensão com a imensidão a se perder de vista.
Ao específico, então: embora a facilidade de descrição textual intrínseca aos procedimentos do cinema estruturalista não seja em nada equivalente à experiência de vê-los em ação, essa possibilidade ajuda a materializar a intervenção crítica ao leitor que não tenha tido a oportunidade de conhecer os filmes – neste caso, infelizmente não muito fáceis de se encontrar (embora i-94 tenha exibição prevista para uma mostra no CCBB-SP). Michigan Avenue tem seis minutos de duração e é composto, objetivamente, de três planos, separados por lentas fusões para uma tela rosa alaranjada, aplainados por uma trilha constante e quase abstrata, como um ruído branco, que parece encobrir breves e indiscerníveis sussurros. O primeiro plano, rigorosamente lumièriano, mostra um grupo de transeuntes caminhando em uma calçada, em direção à câmera. A ação em tempo real não duraria mais que dois ou três segundos – literalmente, o tempo necessário para se dar dois passos – mas é aqui dilatada artificialmente por cerca de um minuto – o tempo dos filmes de Lumière. Essa simples dilatação cria não só um jogo de expectativa, de drama – a espera ansiosa para que algo tão corriqueiro quanto um passo se complete, e a dúvida se isso se concretizará ou não – como convida o olhar a escanear o quadro, em busca de outros dados.
Ao fundo, uma placa: Jefferson st. A localização precisa no mapa contrasta com o título do filme, pois não se trata de uma esquina – na malha viária de Chicago, a avenida Michigan não se encontra com a rua Jefferson – mas de um outro espaço, de um lugar paralelo que só interessa ao filme como afirmação de um outro, de um fora. O espectador que fixa o prosaísmo daqueles passantes desconhecidos pode, então, esmiuçar suas roupas e, a partir delas rastrear, senão necessariamente uma classe social, ao menos um desejo de filiação: homens de terno e gravata acompanhados de mulheres bem vestidas – nem tanto no sentido qualitativo, sempre aberto à discussão das convenções, quanto certamente no quantitativo, como deixarão claro os planos seguintes.
Há, ainda, um dado de outra natureza: se a ralentação da caminhada remete à decupagem dos movimentos do pré-cinema (mais Eadweard Muybridge do que Etienne-Jules Marey), os fotogramas foram reimpressos criando um breve acavalamento na transição de um frame a outro, resultando em uma pequena e suave fusão… um embaralhamento de propósito(s). É um procedimento simples e deliberado, que permite ao filme congelar o instante na duração (em sentido bergsoniano) sem jamais fixar o movimento – ou seja: sem tirar do movimento o que o faz movimento. Há, nesse simples truque, um curto-circuito na própria idéia de imagem em movimento, que preserva ao mesmo tempo o devir cinematográfico (a sucessão de instantes quaisquer, que só se configura neste vir a ser – no borrado entre um fotograma e outro) e o paradigma da pintura do instante pregnante, da imagem fixada.
O segundo plano leva essa dissonância adiante: duas figuras quase andróginas encaram a câmera com as costas para uma parede chapada, em uma negação literal do plano anterior. Se, na abertura, o instantâneo lumièriano era reconciliado aos paradigmas do impressionismo, do pré-cinema e do cinema direto, aqui são os ecos dos espetáculos de estúdio de Thomas Edison, a tradição retratista e os screen tests de Andy Warhol que são reativados. Se, lá, havia a exatidão explícita de todo elemento em cena – o nome de uma rua; homens que se vestem como homens; mulheres que se vestem como mulheres; um passo que se dá após o outro – aqui há a mais completa indefinição – a fluidez de gênero tensionada a uma possível nudez (fora de quadro); a ausência de qualquer signo que localize espacialmente aquela cena além de uma parede acinzentada, remetente ao fundo neutro dos velhos estúdios de fotografia; uma não-coreografia incerta e vacilante, que se transforma com o tempo.
Estaríamos, enfim, em Michigan Avenue? Em um apartamento à margem da avenida? Se aquele primeiro grupo de transeuntes ocupa um espaço que não cruza com o do filme, que lhe dá título, seria este então o espaço aqui representado pela sua quase abstração? Seria a mais longa das avenidas apenas um canto em um quarto? Seria, tudo, afirmação de uma trajetória desviante, de uma avenida em linha reta que só se faz longa porque se ajusta à topografia e à variação dos tamanhos das quadras?
A tensão entre dentro e fora se reconfigura como contra-cultura: as duas “ruas” são verdadeiros mundos sem interseção, que o filme apresenta sob um mesmo protocolo formal justamente para ressaltar como diferença. A ralentação do tempo permanece, embora mais suave, mas a natureza dos gestos alterados é bastante diferente: uma mão que acaricia um cabelo; um olhar que alterna entre as profundezas da objetiva e o fora de quadro; uma relação (seja entre as duas personagens em cena, seja entre elas e a câmera) que foge a uma definição mais perene; uma pose que desafia o documento de suposta espontaneidade do prosaico plano de abertura, e se abala com um pálpebra que se fecha. Por outro lado, se o drama, no primeiro plano, se escorava na previsibilidade do movimento (o próximo passo), no segundo ele é implodido pela imprevisibilidade do gesto que se neutraliza na imagem posada em movimento: cinema ou fotografia?
É da pose que o terceiro plano parte: de corpo inteiro, as duas personagens aparecem deitadas em uma cama, em composição que remete ao paradigma clássico da pintura de nús femininos. Mas se, do primeiro plano ao segundo, o filme ia do movimento aparentemente espontâneo à pose, aqui o vetor da trajetória é novamente invertido: uma das personagens rola, lentamente, para fora da cama, enquanto a outra, mais ao fundo, observa-a, imóvel. Se, do primeiro plano para o segundo, o movimento linear era praticamente neutralizado, aqui é a pose que é desmontada, criando uma oposição entre primeiro e segundo planos da própria composição da imagem (frente e fundo), e o corpo é posto em outro tipo de movimento – que, esburacado pela ralentação, perde a exatidão de contorno, dando pronunciados saltos no tempo, como uma sequência de fotografias animadas. Afinal, se o drama vinha da relação de arquétipos – homens e mulheres, vestidos como tais – com uma movimentação suscetível a certa previsibilidade – uma caminhada linear, um pé após o outro – aqui o movimento é desordenado – uma queda; ou seria um empurrão? – mas a alteração de velocidade o transforma em diversas poses igualmente belas, com o mesmo rigor de composição do retrato frontal, e a apreensão fortuita de um Cartier-Bresson. Perdem-se, justamente, os pequenos ínterins, os detalhes mais rápidos que 1/24 de segundo, que escorreram entre um fotograma e outro.
O instante qualquer é reafirmado como potencial instante pregnante, ao mesmo tempo em que se faz essencialmente drama: a mulher chegará a cair da cama? Ou a fusão para o rosa-alaranjado acontecerá antes disso? O olhar historicamente voyeurista masculino, ativado no princípio idealizado do plano, é desnudado por uma aparente brincadeira(?) entre duas mulheres, assim como os dispositivos – seja no sentido foucaultiano (um sistema de forças que se inscreve em uma relação de poder sobre o indivíduo – uma roupa, uma classe social, um mapa de avenidas) seja na mecanicidade do cinema (a captura do movimento, decupado em fotogramas individuais que captam a integridade do gesto, recomposta visualmente no tempo da projeção) – são retorcidos por estes fotogramas que se fundem em microelipses, e que buscam uma possível síntese de toda oposição, uma dialética de todo encontro aparentemente binário: o dentro e o fora; o universal e o particular; o micro e o macro; o masculino e o feminino; o movimento e o instantâneo; o jogo e o risco; um duelo de olhares.
É justamente dessa questão que se nutre a pequena obra-prima i-94, já colocada na sinopse: “intercourse between two people who never appear on the screen at the same time”. O filme, de apenas dois minutos, é composto de dois planos de um minuto cada (novamente, a duração da bobina Lumière), filmados de uma mesma posição em uma estrada de ferro sob dois viadutos (possivelmente a interstate que lhe dá título, embora não exista evidência que ratifique a associação), que são montados alternadamente, frame a frame, somando os dois minutos da duração total. Em um dos planos, James Benning caminha em direção à câmera, nú, até tomar toda a tela. No outro, Bette Gordon, também nua, caminha no sentido contrário, saindo detrás da câmera, até se perder no horizonte. O “intercurso” anunciado pela sinopse é aludido no vai-e-vem permanente de um plano a outro, produzindo uma fricção de corpos e de sensibilidades que, ainda sim, são mantidos rigorosamente separados.
Há, porém, um segundo efeito mais profundo: embora nunca se encontrem de fato em um mesmo fotograma, a permanência das imagens na retina faz com que os dois corpos pareçam ocupar um mesmo espaço (e de fato ocupam) ao mesmo tempo (o que nunca acontece). Assim como a rodovia que lhe dá título liga regiões distantes do continente, o filme parte de dois elementos separados para promover um encontro, uma via de conexão entre eles, que vaza inclusive para campo e antecampo – a “entrada” detrás da câmera. A estrada de ferro, visualmente tão semelhante ao próprio negativo cinematográfico, materializa esse prolongamento do campo, da câmera para a cena, com personagens que transitam sobre ela.
Em trajetórias coincidentes, mas opostas, os dois arquétipos literalmente se atravessam, em um encontro de sensibilidades que só se dá de fato na experiência da projeção, avesso mesmo à seleção de frames que possam ilustrar o texto. Esse milagre magicamente complexifica as bases de toda uma discussão corrente do papel do gênero na enunciação (seja ela artística ou de discurso), implodindo o binarismo de dentro para fora com a manipulação expressiva do dispositivo, novamente entortando sua precisão mecânica com uma variável orgânica (no caso, o olho do espectador e a sua capacidade de reter imagens para além do tempo que elas de fato se apresentam) para produzir uma distorção semântica, uma outra sensibilidade, uma síntese. Em vez de neutralizar a contradição entre tese e antítese, tendência bastante comum à experiência contemporânea, o filme parte de sua inflamação, de sua fricção, para retirar dela um potencial de autocombustão que, no encontro com o espectador, constrói uma terceira coisa – novamente, transformando a oposição binária em dialética.
Há, nesta simples trajetória de opostos, infinitas variações expressivas que criam, no contraste físico de duas imagens que se atravessam, diversas possibilidades de sentido, inclusive no título – “I” também como “eu”, agramaticalmente minúsculo, fragmentado em dezenas de outros. O encontro dos dois corpos evoca toda uma história de opressão – o porte sensivelmente maior de James Benning, que parece literalmente esmagar sua então companheira ao se “chocar” com ela; a maneira como Bette Gordon aparece apenas de costas, sem jamais mostrar seu rosto; a evocação de uma história pictórica que exacerba a sensualidade feminina (a convenção da caminhada nua e despersonalizada rumo ao horizonte) e usa a brutalidade de um arquétipo masculino como mito de fundação (Benning surgindo das profundezas da tela, como o primeiro dos homens, até encobrir o ponto-de-vista). Essa dimensão é reforçada, ainda, pelo trabalho sonoro: a voz da cineasta, relatando sua frustração por não ser levada a sério, é progressivamente encoberta por comentários de Benning, falando sobre transformações que ele tem passado em sua vida.
Essas escolhas só não sufocam o filme com seu significado intrínseco por estarem escoradas na própria materialidade da imagem – ouvimos a voz sempre de quem está mais próximo à câmera – mas a escolha precisa de algo tão corriqueiro e fundamental quanto o princípio e o fim do filme ativa uma dimensão política que brota da própria forma. Afinal, esta mesma estrutura formal permite, igualmente, outros fins possíveis, quebrando com o fatalismo da representação: a facilidade com que a mulher passa por dentro daquele débil corpo masculino, caminhando incólume para um destino que vai além do ponto de fuga; o constrangimento personalista do sorriso do homem, ocupando predatoriamente o proscênio visual e sonoro, contrastado a este além de dignidade misteriosa que norteia a trajetória da mulher; o tensionamento do movimento linear com um recorte que dobra o princípio sobre o fim, em composição em profundidade que comprime o perto e o longe, e o antecampo sobre o campo: um filme de casal. Em dois minutos, com dois planos e uma simples intervenção matemática em sua organização, Bette Gordon e James Benning criam um curto-circuito entre o estruturalismo e o então vindouro cinéma du corps, recolocando as bases de discussão não só de uma política de gêneros, mas de toda uma maneira de se pensar a história das formas.
Nesse inventário de variações, os filmes de Bette Gordon e James Benning colocam à mesa fragmentos de um mundo possível para ser reorganizado, recombinado, refraseado pelo próximo espectador. Se há, nestes três filmes, a musculatura de um vulto histórico, é porque esse encontro entre dispositivo e corpo trazido para o proscênio materializa e celebra a grande contribuição do estruturalismo para a arte e para o cinema: a convicção de que a frieza da letra é, em verdade, o convite para um corpo-a-corpo com o espectador, sem o qual o filme nunca chega, de fato, a se completar.