Skip to content

Visit or Memories and Confessions (Visita ou Memórias e Confissões, 1982), Manoel de Oliveira

Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2016.

Presente do pretérito

Visita ou Memórias e Confissões é o último filme de Manoel de Oliveira. Depois dele, o diretor realizou pouco mais de quarenta filmes, entre curtas e longas, mas este permanece como seu último. É também o mais novo filme de Manoel de Oliveira, embora, em família tão numerosa, esteja entre os filhos mais velhos. Guardado sob os caprichos da história para ser exibido apenas após a morte do diretor, por exigência própria, o filme chega enfim (o enfim mais triste que se pode imaginar; mas enfim, enfim) às telas como um monumental deslocamento, escorregadio às imprecisões de quem se esforça por precisar o tempo.

De partida, uma casa. A câmera repousa quieta frente a uma árvore vista por entre cercas, enquanto a voz de Oliveira recita o nome dos envolvidos na produção. Diz ter recebido dinheiro do governo português para fazer um filme sobre si, o que talvez fosse má idéia, mas agora já era tarde. Assim que a lista chega ao fim, a voz se bifurca em outras duas: Teresa Madruga e Diogo Dória (que à altura acabavam de filmar Francisca, primeiro filme de ambos com o diretor) assumem o relato desencarnado de dois visitantes que chegam à casa, desabitada mas não vazia, que se lembram terem conhecido em outra oportunidade, durante um jantar. A casa, mais tarde saberemos junto a uma lista de nascimentos, casamentos e mortes, foi do próprio Manoel de Oliveira por um período de 40 anos, e o filme a adentra como tentativa aparente de preservar sua memória, já depois de vendida a um particular. O ponto de vista, porém, é o desse casal de estranhos – ou melhor, esse casal de vozes estranhas – que têm impressão de reconhecer o lugar, ao mesmo tempo que já não têm certeza se estiveram de fato lá. A câmera, em movimento sem corpo mas com gravidade que remete às phantom rides do primeiro cinema, se aproxima da porta. “Já toquei duas vezes e ninguém responde”, diz a voz feminina. “Não há ninguém. Nunca houve ninguém. Foi só uma impressão nossa”, a voz masculina responde.


O tom coloquial do relato é preciso por permitir a fuga do resumo preciso que a frase faz da sensação latente durante toda a projeção. A imprecisão daquele tempo verbal, em paradoxo bipartido já anunciado no título – um filme ou, assim como um filme e; o estrangeirismo da visita aliada à familiaridade do passado das memórias, e do presente das confissões – plenifica o estranhamento diante da natureza daquelas mesmas vozes: serão visitantes de fato? Ou serão os espíritos de Manoel de Oliveira e de Maria Isabel de Oliveira, sua esposa, hoje ainda viva? Se são suas vozes, por que Manoel teria conferido as falas das visitas à sua colaboradora frequente, Agustina Bessa-Luís, em vez de tomá-las de próprio punho, como faz com o resto do filme? Viriam, essas vozes, do passado, do presente ou do futuro? E se de fato são vozes sem corpo, por que ouvimos o compasso insistente de suas pegadas circulando pela casa?

“Não há ninguém. Nunca houve ninguém. Foi só uma impressão nossa”, de fato; uma impressão na emulsão de prata da película cinematográfica, neste filme há tanto realizado mas que só pode se presentificar como agora quando a presença de Manoel, à tela, se choca com a ausência física, ao mundo, que permite àquela trêmula aparição existir: estamos no tempo do cinema.


Da filmagem à data programada de exibição, Visita ou Memórias e Confissões é construído como cuidadosa demonstração didática do tempo cinematográfico. A natureza paradoxal da experiência temporal de uma projeção de cinema se multiplica na casa íntima porém estrangeira, no relato pessoal sobre um espaço que já não mais lhe pertence, na relativa juventude post mortem do diretor a endereçar a platéia, falando conosco como um mensageiro de um outro lado ainda não experimentado, de um sumiço que, embora já consumado, permanece por vir. Espectadores mais familiarizados com o universo do diretor reconhecerão o rosto de Manoel de Oliveira e de Maria Isabel, sua esposa, entre as pinturas da casa e os porta-retratos sobre a mesa, mas este reconhecimento em si não carrega índice de veracidade, de relação com o real que torne menos ambígua aquela jornada por um passado feito presente de uma casa que já a ninguém pertence, recriada feito estúdio, ao mesmo tempo manifestação e representação de si mesma. “Não reconheço ninguém. Vês alguém conhecido?”, diz a voz feminina, ao olhar a porção de retratos sobre a cômoda do quarto do casal. “Não”, ele responde. “Mas os retratos nunca são reais”.

Surge então o próprio Manoel de Oliveira, a tamborilar em uma máquina de escrever que já não mais escreve, em um canto de uma casa que não é mais sua, planificando um filme futuro que há muito já foi feito (em outro momento, o diretor fará alusão a Angélica, filme que diz jamais ter conseguido fazer, mas que ele por fim realizaria em 2010, com o título de O Estranho Caso de Angélica, 60 anos depois de tê-lo concebido, e quase 30 depois de ter lamentado nunca tê-lo feito). Fala diretamente a nós, contando a história daquela casa e de outras de sua vida, como o apresentador de um cinejornal dedicado aos acontecimentos de sua própria vida. Por fim, fecha as cortinas e liga um projetor de cinema.


O feixe de luz que vem do projetor incide frontalmente contra a câmera, invertendo radicalmente o eixo de imagem: de súbito, somos nós, a platéia, a projeção feita pelo diretor, encarnando os filmes passados que ele deseja nos mostrar; ao mesmo tempo, a câmera que o filma se torna o projetor do filme que vemos, jogando sobre a tela aquela imagem que se mostra e que se projeta, literalmente, sobre nós, restaurando a dupla função original do cinematógrafo Lumière. “A luz não vai de encontro a uma imagem, não banha uma imagem, não ilumina uma imagem. A luz primeiramente a penetra, depois a transporta, duplicando-a ao desmaterializá-la, às vezes temporalizando-a e sublimando-a” (Dominique Païni, Should We Put an End to Projection?). Sobreposta às memórias e confissões, a fala de Manoel de Oliveira se dirige feito um traço rumo a um espaço imaginário vazio, detrás da tela, enquanto as vozes de Teresa Madruga e Diogo Dória falam, do antecampo habitado, para uma casa onde já não se mora, e não se sabe mais se um dia de fato se esteve.

Novamente, o filme se configura como limbo – aqui literalmente representado à imagem do limbo dos infantes católico (embora, para existir, o filme precise ser tão católico quanto espírita), com planos de arquivo em preto e branco riscado de crianças a brincar, montados, com um corte magnificamente seco, com os (supostos) netos do diretor (entre eles, Ricardo Trêpa, um dos principais atores de seus filmes tardios, flagrado aqui ainda criança em um porta retrato) nas cores do presente (do filme – mas agora já era tarde), andando de bicicletas ao redor daquela casa que não é mais a do avô – para ressituar a experiência do tempo cinematográfico como uma espécie de não-tempo, como uma bolha para a convivência de outros tempos: o tempo infinito dos que morreram antes de terem sido batizados.

Visita ou Memórias e Confissões é todo feito desses saltos, promovendo ora reconciliações, ora cortes, em relações que dão conta da experiência cinematográfica justamente pela certeza ontológica de sua ambiguidade. Cada corte se abre não uma, mas duas vezes, neste filme de sentidos que andam sempre em pares dessincrônicos, como a floração das magnólias no muro de entrada da casa… o cinema como metáfora à arquitetura e à agricultura.

Mais adiante, no avançar de sua tragédia financeira, o filme restabelece a relação entre a fábrica familiar abandonada (e conservada por ele como respeito à memória do pai) ao sonho do cinema de estúdio, não só reatando pontas de uma mesma origem (de criação e de destruição – com a história da ocupação operária que leva à venda da casa), mas novamente criando um complexo jogo temporal entre passado e presente, vida e cinema, no espelhamento assimétrico de dois lugares vazios. “O estúdio, a iluminação, os cenários são o habitat mais fascinante do cinema”, ele diz, reafirmando a natureza metafórica daquela casa abandonada. “Pois que o cinema de estúdio é sempre o de ficção, e a ficção é a verdadeira realidade do cinema. É por ela, penso, que melhor se poderá aferir a realidade, ou uma realidade concreta”, conclui, no mais explícito auto-comentário de todo o filme.


A tarde cai. “Não estamos nem vivos nem mortos”, diz a voz feminina, em outra declaração de auto-reflexão, enquanto o filme se aprofunda em sua espiral de tempos e espaços, de pilastras que se fazem mastros e quartas paredes que são impiedosamente destronadas de qualquer auto-reverência. Visita ou Memórias e Confissões é um filme tão profundamente auto-reflexivo quanto seus pares contemporâneos (de trinta anos depois), mas o que o cinema de Manoel de Oliveira sempre teve de especial é a sensibilidade de tomar essa auto-consciência como manifestação do mistério mais amplo da vida, sem jamais desconectar o fascínio com o aparato da condição histórica, física e espiritual do ser. É um cinema onde tanto os retratos quanto os cinzeiros movem-se à vontade pela mesa, dotados de uma mesma vida própria, pois a preocupação ontológica não é valor auto-imposto, mas reflexo da própria inquietude do homem diante da finitude da vida – inquietude que encontra, no cinema, uma outra resposta.

Nesse último-não-último filme, não há espaço nem para a apologia sentimental da vida pelo vivido, nem para o delírio do artista que tenta se perpetuar pela obra, além da própria morte. Manoel de Oliveira recebeu dinheiro do governo para fazer um filme sobre si; terminou fazendo um filme sobre todo o resto, reafirmando o que pode (e por isso encanta) o próprio cinema: com uma ponta branca a correr pelo projetor, tornar todas essas palavras definitivas impróprias, insuficientes, obsoletas.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *