Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2018.
“Por outro lado, o cinema é uma indústria”
Em Julho de 2014, Snowpiercer, de Bong Joon-ho, saiu das notícias de jornais – onde encontrara ressonância antes de chegar às páginas de resenhas, por conta da ebulição cinéfila causada pelas exigências da Weinstein Company, distribuidora do filme, para que o diretor alterasse significativamente seu corte original – e demandou sua vaga em capítulos em branco nos estudos de caso da economia da indústria cinematográfica. Com lançamento minguado no circuito arthouse americano como birra pela recusa do diretor em atender às solicitações, o filme se tornou sucesso imediato como video on demand, dobrando a arrecadação nas bilheterias e obrigando os Weinstein a replanejar sua estratégia, ampliando exponencialmente sua ocupação emergencial das salas na tentativa de correr atrás do prejuízo. Tanto faz que a distribuidora tenha se beneficiado de sua própria estupidez e que o filme pavimente novos caminhos de exploração comercial do cinema porvir; a vitória do cinema, ao contrário do que indicam as evidências, não se mede com cifrões.
O filme vencera a batalha contra a indústria que o alimenta, mas no paquidérmico circuito brasileiro essa guerra já nasce perdida: Snowpiercer chega aos nossos cinemas com mais de um ano de atraso, sem soprar vento em palhas mornas, com lentidão coroada pela ironia acidental de seu título em português – Expresso do Amanhã (e se puder deixar pra depois de amanhã, melhor ainda). Transformemos em sabedoria acidental a absoluta surdez dos executivos sem pulso que, para economizar energia, desplugam o circuito brasileiro dos sonares espalhados pelo mundo (sem a necessidade de voltarmos atrás na promessa de, em futuro não muito distante, mijarmos com gosto em suas covas): Snowpiercer não perdeu em nada sua potência. O oposto: como toda obra de arte viva, o filme só faz se iluminar pelos tropeços dessa incompreensão. Para que ele cumpra seu destino como gesto terrorista, é fundamental que seu alvo principal jamais entenda a piada.
O último vagão do trem
No princípio, havia não o verbo, mas um trem:
“Descrevendo a mudança de veículos de tração animal para a ferrovia, Wolfgang Schivelbusch apontou: ‘Como as irregularidades naturais do terreno que eram perceptíveis nas velhas estradas foram substituídas pela linearidade da estrada de ferro, o viajante sente ter perdido contato com a paisagem, experimentando isto de maneira mais aguda quando passa por um túnel. Descrições primevas dessas viagens apontavam a impressão de que a ferrovia e a paisagem por onde ela passava eram como dois mundos separados.’ O mundo do viajante é mediado pela ferrovia, não somente pelo quadro proporcionado pela janela do vagão, mas também por fios telegráficos, que se colocam entre o passageiro e a paisagem. A sensação de separação experimentada pelo passageiro ao ver a paisagem correndo pela janela tem muito em comum com a experiência cinematográfica do espectador”, escreveu Charles Musser em Moving towards fictional narratives, presente na coletânea de artigos The Silent Cinema Reader, de Lee Grieveson e Peter Krämer.
Snowpiercer começa no último vagão de um trem, mas desta vez não há janelas que permitam à vista interagir com a paisagem do lado de fora. Aqui, o trem, analogia permanente para o cinema na raiz comum à câmera e à máquina a vapor, parece ter perdido este outro lado da moeda: a função mediadora da experiência do espectador como mundo. O trem de Snowpiercer já não chega a estação alguma, espalhando-se pelos mais diversos continentes, movido não pelo desejo de olhar e mostrar, mas pela cegueira imperialista que mal percebe que já não há mais mundo a ser visto do lado de fora (só neve em CGI).
Acidente ou não, é difícil não ver com ironia o nome da companhia que comanda o trem – Wilford, que, embora não seja literalmente Weinstein, compartilha o W como logo marca, antecipando a traumática relação porvir, facilmente intuída quando um diretor de sucesso na indústria local se aventura com uma primeira super-produção em língua inglesa. Se, por um lado, Bong Joon-ho realiza um habilidosíssimo filme de ação – faceta que explica seu extraordinário desempenho de bilheteria, e a satisfação permanente ao assisti-lo – por outro, corre em algum lugar entre o assoalho e os trilhos uma fascinante aventura paralela espelhada em auto-reflexividade. “Sou apenas uma sombra da minha antiga sombra”, diz Gilliam (John Hurt) ao seu pupilo, Curtis Everett (Chris Evans), em uma das muitas metáforas em potencial sobre o próprio cinema espalhadas pelo filme. A plebe se revolta em uma luta sacrificial pela tomada dos meios de produção – no caso, para chegar à locomotiva do trem.
Em entrevista à Cinética, a crítica francesa Nicole Brenez fala de sua paixão especial pelo cinema de sabotagem, capaz de usar os meios da indústria para pervertê-la por dentro. “(…) há todas as pessoas que estão dentro da indústria tentando subvertê-la, e é como o sequestro de um avião, tendo que desconstruir a indústria, sequestrá-la e fazer filmes críticos extraordinários”. Bong Joon-ho não só literaliza esse gesto, fazendo um filme sobre a insurreição analógica neste cárcere sobre trilhos rumo aos vagões com janelas para um mundo de pixels, mas o autoriza com um detalhe de fina ironia: o único passageiro capaz de abrir as portas é Namgoong Minsoo, interpretado por Song Kang-ho – o rosto icônico de três dos filmes anteriores de Bong, assim como outros de Park Chan-wook e Lee Chang-dong – e um dos poucos não-ocidentais a bordo. Em troca por cada porta aberta, ele recebe um punhado de Kronol – droga feita de lixo tóxico que, além de alucinógena, é altamente inflamável. Como nos bons filmes B, nada em Snowpiercer é mera coincidência.
O que segue a cada nova porta aberta é um tour de force de imaginação cênica que atropela noções tradicionais de drama (difícil imaginar protagonista menos magnético do que Chris Evans, e o filme será o primeiro a fazer piada disso, lhe desafiando em dado momento: “You have to lead us”), seja pelo trabalho expressivo com o cenário – diversas vezes incorporando projeções, ou motivos gráficos que remetem a fotogramas e às perfurações da película cinematográfica – ou por uma plasticidade bruta e fugidia que remete ao melhor de Philippe Grandrieux – a sequência no longo túnel, por exemplo, começa com uma chacina mediada pelo verde dos óculos de visão termodinâmica e termina com tochas em punho, com rostos parcamente iluminados pelo amarelo das chamas em meio à escuridão, em uma radical exploração das profundezas cromáticas da película.
Se, por um lado, essa progressão carnavalesca por diversas “fases” remete à obra-prima Warriors – Os Selvagens da Noite (1979), com variações sobre um mesmo tema (as diversas “gangues” que aguardam do outro lado da porta), a abordagem irônica do cinema de estúdio alude a outra obra-prima, O Vingador do Futuro (1990), de Paul Verhoeven, com sua visão particular do apocalipse como confinamento (ou, em outras palavras, o Fritz Lang de Western Union, mais do que o de Metrópolis). São sabotadores por excelência que, aqui referenciados, reafirmam a filiação de Snowpiercer a uma Hollywood que já não mais existe, hoje às voltas com a produção em massa do CGI e das adaptações de quadrinhos, e que, com armas quase sem balas, recorre à importação canibalística de cineastas como Bong Joon-ho que possam vislumbrar possibilidades de sobrevida.
A saída, porém, é sempre concreta e está em algum lugar diante da janela. É pela observação atenta, mesmo que fragmentada, do mundo exterior que o personagem de Song Kang-ho percebe um dever fundamental: à sobrevivência em um mundo inóspito, cabe ao artista vislumbrar outra saída. Um avião outrora soterrado pela neve digital – sim, o avião, aquela criação que a decupagem quadro a quadro do pré-cinema de Muybridge antevia no estudo dos movimentos dos pássaros – começa a se fazer visível, dando indícios de que a neve começara a derreter, e de que o apocalipse tenha se tornado habitável. O problema, portanto, não é que o mundo lá fora tenha deixado de existir, mas que o trem tenha sido tomado como substituto do mundo, a despeito da fundação contemplativa de sua origem. “Quando você sonha demais com o sol, você se esquece das árvores”, diz o personagem do Pintor (Clark Middleton), metaforizando a luz-mãe do projetor de cinema e remontando à origem impressionista que Godard via nos filmes de Lumière, e no relato de Méliès sobre as folhas das árvores agitadas pelo vento, “como se, nas vistas Lumières, o ar, a água, a luz se tornassem palpáveis, infinitamente presentes” (Jacques Aumont, O Olho Interminável).
Enquanto ao líder, ao falso protagonista, ao candidato a gatekeeper, é ofertada uma posição de poder num regime de permanência da opressão – com direito a um discurso de Wilford (Ed Harris) que fala em blockbsuters e super-produções – ao sabotador coreano resta a possibilidade de explodir a porta emperrada de saída com uma bomba de lixo tóxico visto por todos os outros apenas como breve chance de entretenimento, de alucinação voluntária. Que o sabotador morra no processo, permitindo a saída apenas daqueles que possuem reais chances de futuro, não é mais que justiça poética. Se, por condição, Bong Joon-ho não é exatamente um poeta do cinema de gênero – como foi John Woo; como são Johnnie To e Takeshi Kitano – Snowpiercer o redefine, com toda a amplitude do termo, como legítimo cineasta de ação.