Publicado originalmente na Cinética em Agosto de 2015.
O subtexto do texto
Divertida Mente é um filme pelo qual é fácil torcer. Novo lançamento do último estúdio a honrar o termo em Hollywood (a Pixar), e co-dirigido por Pete Docter, autor de um dos mais belos e abismais filmes dos últimos anos (o primoroso Up!, de 2009), o filme parte da simpática e salutar premissa de velar, feito um anjo da guarda, por uma pré-adolescente em transformação física e emocional. A ambição de falar a todos encontra a responsabilidade de quem sabe com quem fala: em época em que o suicídio figura como terceiro lugar de causa mortis entre jovens, Divertida Mente tateia pelo problema ainda antes de germinar, tentando não exatamente entorpecer a consciência primeira das dores do crescimento, mas dizer que elas são, de fato, parte da vida. A “tirania do final feliz” que Erich Von Stroheim lutava para destronar nos primórdios de Hollywood, ganha aqui um traço político: na gestação de um futuro sem chão, o gesto justo está justamente em afirmar que, no final, tudo ficará bem.
Se, por um lado, a Pixar criou uma reputação por seu papel pioneiro na revolução digital – nos melhores casos, como Procurando Nemo (2003), Ratatouille (2007) e toda a série Toy Story (1995; 1999; 2010), como ferramenta para a criação de um variadíssimo universo tátil de cores, brilhos e texturas – essa ponta de lança só faz corte por se assentar no domínio absoluto da tradição dramatúrgica de Hollywood. “O último dos estúdios” é expressão cabível não só por os filmes da Pixar terem um perfil claramente delimitado que se sobrepõe a qualquer outro imperativo artístico ou de marketing (antes de qualquer coisa, vamos ao cinema para ver um filme da Pixar, como em outras eras ia-se ao cinema para ver um musical da RKO, uma comédia da Paramount, um Western da Fox), mas por o estúdio cumprir à risca a hipótese levantada por David Bordwell em The Way Hollywood Tells It (2006) de que o cinema hollywoodiano encontra margem para considerável experimentação e transformação apenas dentro de uma aderência estrita às convenções fundamentais de sua tradição narrativa. Para se ter a imagem exata do esqueleto de um filme de estúdio moderno, melhor do que todo e qualquer manual de roteiro é olhar dedicadamente para Procurando Nemo; para se entender o que pode uma sequência de montage, nenhum exemplo é mais ideal no cinema recente do que o extraordinário prólogo de Up!.
Como parte de uma produção que reproduz esse modelo industrial, é forçoso, portanto, que este novo filme mire nestes mesmos dois alvos: a riqueza de detalhes do universo e a aguda consciência estrutural da escrita. Em Divertida Mente, o corpo humano se abre como um parque temático onde consciente, inconsciente, sonho, memória, experiência física e psíquica se organizam como em um jogo cujo objetivo último é o equilíbrio pleno da suposta protagonista, Riley. Suposta, pois a Riley é reservado pouco espaço além do primeiro ato, que expõe as regras do jogo. Seu protagonismo, em verdade, está mais próximo do vídeo game em primeira pessoa, ou antes da experiência subjetivante que neutraliza o ponto de vista de um filme como Quero Ser John Malkovich (1999): vemos através dela, e não por meio dela.
Riley é um personagem virado do avesso, com as tripas deitadas sobre a maca, pois interessa menos o resultado acabado da escrita – este personagem feito pessoa (e parte da mágica da Pixar sempre esteve em sua habilidade de transformar tudo – um rato, um peixe, um boneco de cowboy, uma animação, em suma – em pessoa) – do que a necrologia reversa, o estudo de um ser sem corpo, de entranhas feitas de palha e feno. O que importa ao filme, no fim das contas, não é o todo, mas perceber que aquele todo é fruto da harmonia de uma série de elementos, cuidadosamente orquestrados para lhe conferir alguma possibilidade de presença. Em vez da vida, o artifício, os feixes que atravessam a alma de um personagem e que coroam a ambiguidade e a contradição como índice soberano de credibilidade: “Quando indicado através de comportamento, objetos de cena, ou diálogo, os defeitos de um personagem se tornam parte do ‘subtexto’.”, escreveu Bordwell, e não há filme feito em Hollywood que possa se auto-proclamar moderno sem protagonistas falhos, sem uma batalha permanente entre o dito e o não-dito.
Divertida Mente, porém,faz um movimento demonstrativo que muitos chamariam de pós-moderno: mover o subtexto ao texto. Para isso, o filme decompõe a bagunça hormonal das “vozes em nossa cabeça” em personagens – Alegria; Tristeza; Medo; Raiva e Nojo – abrindo à mesa um dos mais caros fundamentos da dramaturgia hollywoodiana: o conflito interno. O exercício pode parecer interessante no papel, e o filme não é carente dos achados que se pode esperar mesmo nos feitos menos interessantes da Pixar, mas se Riley – este arquétipo de herói moderno – não é a protagonista, quem é?
É aí que o Divertida Mente coloca seu próprio pescoço na guilhotina, pois, se todo conflito interno é literalizado, e todo feixe de composição é tratado como unidade autônoma, à Alegria – a verdadeira protagonista do filme – cabe apenas ser a imagem da alegria (pois, em verdade, essa corrida sem freios nunca é levada ao paroxismo de um dispositivo: se Alegria fosse realmente apenas alegre, todo o tempo, choques poderiam surgir dessa inexorabilidade), sem possibilidade de transformação ou mínima autonomia, uma vez que a estrutura para permitir os saltos que não vêm precisa ser seguida ao pé da letra, em uma jornada de herói típica que sabemos por princípio como começa, onde termina e por onde passa.
O problema, aí, está menos em o verdadeiro herói do filme não cumprir o arco de transformação que a convenção prevê (pensemos em Noites de Cabíria, em Five Easy Pieces, em uma série de filmes sobre personagens que não aprendem absolutamente nada – como seria a Alegria liberta da jornada do herói) do que em sua absoluta ausência de mistérios. “Os objetos que não convidam o espírito à reflexão são todos aqueles que não conduzem simultaneamente a sensações contrárias; os que conduzem, coloco-os entre os que convidam à reflexão, sempre que a sensação, quer venha de perto, quer de longe, não põe em evidência se se trata de um objeto, se do seu contrário. (…) Ora, não é forçoso que, em tais circunstâncias, a alma fique perplexa ante o significado de uma sensação de dureza e de moleza do mesmo objeto, e bem assim da de leveza e de peso, sem saber o que é a leveza e o peso, uma vez que o que é pesado mostra ter também leveza, e o que é leve, peso?”.
A perplexidade de Platão, em A República, ainda é, ou deveria ser, o pote de ouro buscado pela Poética, de Aristóteles – guia ancestral para toda a teoria do roteiro hollywoodiano. Não à toa, os melhores momentos de Divertida Mente são justamente aqueles em que somos convidados a ocupar o vácuo entre a experiência subjetiva do Um e a apreensão objetiva do Outro (o jantar em família; os saborosos créditos finais), algo que também poderia acontecer no embate entre personagens que nunca, jamais mudam: saltando de uma cabeça para outra, desorientando pela explosão de perspectivas, e internalizando novamente o conflito, faz-se graça. E a possibilidade da graça, minúscula ou maiúscula, é o que faz, ou fazia (mesmo com a disneyficação latente em Divertida Mente, é muito cedo para dizer), dos filmes da Pixar uma ilha de experiência na Hollywood de hoje, na Hollywood de sempre.