Publicado originalmente na Cinética em Março de 2015.
A impressão do trabalho
“Consideremos agora o resíduo dos produtos do trabalho. Eles assemelham-se completamente uns aos outros. Todos eles têm uma mesma realidade fantástica, invisível. Metamorfoseados em sublimados idênticos, fracções do mesmo trabalho indistinto, todos estes objetos manifestam apenas uma coisa: que na sua produção foi dispendida uma força de trabalho humano, que neles está acumulado trabalho humano [independentemente da forma concreta do trabalho]. Enquanto cristais dessa substância social comum, são considerados valores”.
O Capital, Karl Marx
Em um corredor escuro, uma única lâmpada vermelha remete aos laboratórios de revelação de película. Ao fim do corredor, vira-se à direita para uma sala – uma caixa negra, e não um cubo branco, como de praxe nas galerias contemporâneas – onde um projetor 16mm exibe, em loop, o filme Kodak (2006), de Tacita Dean. Essa simples instalação feita no Instituto Moreira Salles, do Rio de Janeiro, em exposição dedicada à artista, é o prenúncio da reflexividade material que faz do filme uma chance de condensação das principais preocupações da obra de Dean.
Em entrevista à Kultureflash, Tacita Dean complementa informações que a projeção permite entrever:
“Eu estava tentando adquirir filme preto e branco pra minha câmera 16mm, e fiquei sabendo que a Kodak estava parando de produzi-lo. Encontrei cinco rolos em Nova York e logo tive a idéia de usá-los para filmar a fábrica da Kodak em Chalon-sur-Saône, embora ainda não soubesse que eles haviam decidido parar com toda a produção de película lá. A idéia do filme era de usar este suporte obsoleto para registrar ele próprio. A questão é que se trata de um meio que está a um passo de ser exaurido”.
Quando se assiste a Kodak em condições de exibição que lhes são ideais, vê-se, no meio da sala, um projetor de 16mm que projeta um filme 16mm sobre os últimos dias de feitura de uma película 16mm. Nessa mise en abyme, Tacita Dean chama atenção não só a questões caras à arte contemporânea, como a obsolescência (um suporte e um aparato que ganham nova aura ao serem tornados objeto de museu) e a especificidade material (com toda a ironia de que as galerias e os museus, fontes de eterna disputa de força com o cinema, sejam em última instância dos maiores responsáveis pela sobrevivência da película como suporte de imagens em movimento), mas também a dados inerentes à ontologia do próprio cinema. Pois Kodak é, entre outras coisas, a materialização para o espectador da consciência do caráter embalsamador que está no princípio da projeção cinematográfica: quando se assiste à obra, as condições materiais que permitiram sua realização já não mais existem. O trabalho que o filme registra e o produto desse trabalho (a película) que ele usa para registrá-lo só podem ser encontrados em um documento do passado, inacessíveis, museificados. Tudo se re-efetiva apenas neste presente-do-pretérito que é o momento de projeção: o passado é feito presente, como passado.
No filme, porém, toda tentativa de precisão temporal é dobrada sobre si. Kodak começa com as máquinas de fabricação de película paradas, em planos estáticos em preto e branco, 24 naturezas-mortas por segundo, animadas apenas pela leve mas persistente pulsação do filme que corre no projetor. O prenúncio do fim, porém, se reefetiva como um novo começo (um filme em loop), quando, logo no terceiro plano, um funcionário aparece e as máquinas são colocadas em funcionamento: as paisagens industriais esvaziadas da arte contemporânea se reconectam com o entusiasmo das fábricas que acordam para o dia de trabalho nos filmes de Dziga Vertov.
Essa diferença é fundamental, pois se muito da arte contemporânea usa os princípios de obsolescência para tentar enterrar um capitalismo que apenas se finge de morto – pensemos aqui nas célebres fotografias de altos-fornos desativados de Bern e Hilla Becher e de como elas afirmam a suposta obsolescência de um projeto moderno (as fábricas, mas também o engajamento de uma arte política) transformando-o em imagens-signos dignas da “neutralidade simbólica” do museu -, em Kodak,Tacita Dean mostra esses altos-fornos reabitados, reafirmando, ainda que no ocaso daquela indústria (que é só o nascimento de outra), a obra como fruto do trabalho.
Em época em que o vídeo propõe uma evaporação da matéria imagética, o filme de Dean ressitua a película como o suporte que carrega no corpo a fisicalidade do trabalho, cumprindo o ideal marxista da equivalência entre aparência e essência – logo, nada mais natural que Kodak seja (como O Canto do Estireno, de Alain Resnais; como Lições da Escuridão, de Werner Herzog) ao mesmo tempo um documentário e uma ficção científica. Se o vídeo digital traz uma nova possibilidade para que o capitalismo cumpra sua meta de limpar do produto a impressão do trabalho ali empregado (como fazer um filme sobre a fabricação do vídeo digital?), transformando força em dígitos, em Kodak filma-se a fabricação do próprio filme, como se a grifar: cada grão visível nesta projeção é a materialização de uma força humana, de uma mentalidade moderna industrial (o cinema, filho direto da máquina a vapor) e de um sistema de valores que transmuta, mas perdura à obsolescência de sua base material – e não deixa de ser uma outra camada de ironia que se trate de um dos poucos trabalhos da diretora encontráveis em DVD, saindo da lógica de escassez das galerias e entrando na produção em massa que traz uma falsa capa de virtualidade.
O que resulta desse processo de igualdade (e nunca de indistinção) entre as diversas etapas do processo de produção que terminam cristalizados em um filme é uma verdadeira imantação ontológica: todo plano de Kodak se torna inevitavelmente uma reflexão sobre si mesmo. A cada porta que se abre e fecha, vê-se o obturador da câmera em trabalho; a cada luz que atravessa alguma transparência em quadro, faz-se notar a luz do projetor que joga a imagem sobre a tela. Todo plano do filme funciona na dupla condição de repactuar o compromisso com a imersão na projeção cinematográfica e, ao mesmo tempo, tirar o espectador do mergulho desinteressado, chamando atenção para as forças que o convidam e o implicam neste mergulho. Essa experiência parece encontrar melhor definição nas palavras D.N. Rodowick em The Virtual Life of Film, complexificando a busca da teoria cinematográfica por uma ontologia do cinema (aqui por ele referida como “Imagem Modelo”): “O desdobramento final da morte do cinema é a fundação de uma ética da visão e de uma transformação de uma Imagem Modelo (nota do autor: Model Image, no original) em uma Imagem Moral (nota do autor: Moral Image, no original, jogo de palavras que se perde na tradução), espelhando os imperativos e os valores ligados ao ato de ver um filme”.
Essas duas forças que permitem a criação de uma Imagem Moral estão em constante balé de atração e repulsa, por vezes convidando à profundidade, à transparência; outras, repelindo, interditando à superfície, ressaltando que, ao menos no cinema, toda transparência é algo translúcida. Não à toa, diversos dos planos de Kodak são dedicados a registrar o simples movimento da película correndo entre pares de carretéis, por vezes criando composições abstratas (em outras, “imitando” os riscos que as películas ganham a cada nova exibição) que parecem ter como “tema” o ritmo da própria projeção cinematográfica – aqui, em dobro: a do filme filmado somada à do filme exibido – em abordagem que, pelo documentário, se aproxima genealogicamente igualmente de Onde Jaz o teu Sorriso, de Pedro Costa, e dos filmes de Peter Kubelka, em sua disposição de reconectar matéria, realização e exibição.
Toda essa reflexão, porém, sobrevive alheia à obra, suscitada por ela, mas independente dela – e manter o filme refém dessa lógica o transformaria em mero gatilho conceitual de um diagnóstico pertinente que nunca se preocupa em salvar o doente. O que impressiona no melhor da obra de Tacita Dean é justamente o quanto essa reflexão é não só aludida, mas permanentemente reanimada e reconfigurada pelos grande achados de inspiração que povoam seus filmes – especialmente vitais em uma peça “longa” como Kodak, com a monumentalidade de seus pouco mais de 40 minutos de duração. Com um sistema de composição e de duração aparentemente rígidos, Tacita Dean frequentemente dobra seu próprio protocolo, trazendo um novo elemento que complexifica toda a operação conceitual, e que, a cada aparição, guarda o potencial de descobrimento dos grandes filmes. Uma das primeiras grandes surpresas de Kodak (e há várias outras, nos lugares mais inesperados) se dá logo nos primeiros minutos de projeção, quando, com um corte, as inóspitas paisagens em preto e branco da fábrica ganham um súbito jorro de vida com uma película azul que corre sobre um carretel cromado. A simples aparição da cor encontra, aqui, um potencial de surpresa que o cinema fez paradigma em O Mágico de Oz (1939), de Victor Fleming, ao mesmo tempo em que evoca a beleza bruta dos azuis patenteados de Yves Klein.
Se Kodak começa reencarnando o deslumbre modernista das sinfonias das cidades – vale ressaltar, ainda, a tendência da diretora de, como Vertov, frequentemente isolar os objetos no centro do quadro, como se a buscar uma visão objetiva, mas logo em seguida desmontar essa abordagem com a subjetividade exacerbada que abstrai o concreto nas composições mais fechadas – é interessante que o filme termine dando um passo atrás: a tactilidade da câmera que se cola ao filme em produção dá vez a planos distanciados de rolos e restos de película largados pelo chão. Nas palavras de Marx, “os resíduos do trabalho” ali permanecem, perversamente indistintos, igualmente cinema, enquanto uma placa melancólica anuncia “Super 8”, como um mausoléu traz à certeza do destino de tudo que é vivo um traço ainda incompleto em mau agouro: 1895-? Nesta casa de espelhos onde toda imagem se reproduz sem omitir os contornos da moldura, Tacita Dean cria um intricado jogo de opostos onde superfície e profundidade se igualam, o presente encontra a nobre função de jogar luz sobre o passado e o futuro, e todas as portas de saída levam, paradoxalmente, para dentro.