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Rithy Panh

Publicado originalmente em O Cinema de Rithy Panh, editado por Carla Maia e Luis Felipe Flores (São Paulo; Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2013) 111-9.

Como realizar uma fuga

Na tentativa de uma historiografia crítica do cinema, é comum a afirmação de parâmetros, categorias e critérios que, mais do que esgotar, servem como ferramenta possível para catalogar e ilustrar certas proximidades genealógicas, em graus mais ou menos perceptíveis de parentesco. Essa sistematização é fundada na injustiça – dividir o cinema entre Lumière e Méliès é um gesto brutalmente redutor mesmo no contexto específico dos primeiros dez anos da arte cinematográfica –, mas ela também abre certas possibilidades de compreensão das
obras justamente ao traçar paralelos, demarcando proximidades fundadas na diferença.

No cinema japonês, um dos binômios mais conhecidos da crítica moderna está na divisão de abordagens de Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi – dois incontornáveis autores na história do cinema. Neste caso, a obra de Ozu é tomada como exemplo de um sistema fechado que não traz paralelos mais claros com a biografia do autor – uma das ferramentas mais caras a uma crítica de natureza interpretativa, como deixa claro o volume de livros escritos sobre um Salvador Dalí, por exemplo – a não ser, talvez, o gosto pela bebida. Ozu filmou diversas histórias de casamento, mas permaneceu solteiro até o final da vida; realizou comédias e dramas sobre a vida universitária, mas não chegou a frequentar uma; se dedicou a cartografar a explosão do imaginário moderno em Tóquio, incluindo o nome da cidade no título de alguns de seus filmes, mas passou sua vida de fato na cidadezinha de Matsuzaka. Sua passagem pelo exército japonês e sua experiência de guerra, por outro lado, nunca deram as
caras em seus filmes. Essa mesma abordagem crítica encontra em Mizoguchi um oposto simétrico: há paralelos claros entre sua biografia – em especial do episódio da adoção de sua irmã, que mais tarde se tornaria uma gueixa, com sua predileção por heroínas femininas que encontravam no sofrimento uma possibilidade de superar sua própria condição – e o bojo temático de seu trabalho artístico, que pode ser visto como uma espécie de purgação paulatina do peso de uma culpa ancestral.

Se usarmos o binômio acima como ferramenta que divide o cinema em dois polos hipotéticos, Rithy Panh a princípio estaria muito mais próximo de Mizoguchi do que de Ozu. É impossível e inapropriado isolar seu trabalho de sua biografia, uma vez que todo o cinema de Panh é atravessado por um mesmo trauma, um mesmo fato original: as consequências do regime genocida do Khmer Vermelho, no Camboja – regime que dizimou a família do diretor (junto com boa parte da população do país) e o fez fugir para a Tailândia e posteriormente para a
França, onde ele começa e mantém sua carreira cinematográfica. Mas aproximações com o passado só revelam o novo, o específico, se calcadas em diferença: se em Mizoguchi a relação com este atravessamento da realidade tem algo de purgação, não há expiação possível no cinema de Rithy Panh.

O retorno, aqui, tem um sentido ontológico: assim como os artistas maneiristas voltam obsessivamente a uma mesma obra de referência, como se a compreensão da realização artística incluísse esta obra (pensemos na relação entre Brian De Palma e Alfred Hitchcock, por exemplo), no cinema de Rithy Panh, toda e qualquer relação com o mundo vem condicionada por este trauma inicial. É menos, portanto, uma obsessão particular e mais o reconhecimento de uma inevitabilidade: não há mundo ou vida possível na concepção de Rithy Panh que não
seja marcada por este trauma, por esta experiência. Neste gesto obsessivo, a obra de Panh já se configura como um documento histórico precioso, sem redundância no cinema contemporâneo.

Mas a especificidade que torna Rithy Panh um cineasta tão particular transborda a insularidade de um olhar cambojano na linha de frente do cinema contemporâneo. Pois, mais do que um recorte temático que já determina de antemão o valor desse registro, é no trabalho com a forma que Rithy Panh responde de maneira mais frontal à sua experiência de vida, por vezes transformando os próprios procedimentos fílmicos em uma espécie de reação. Com esse gesto, Rithy Panh deixa de ser fonte de curiosidade de etnocentrismo cinéfilo e se destaca pela capacidade de, em seus melhores filmes, redefinir os procedimentos possíveis em um cinema francamente político, hoje. É pelas escolhas formais que o diretor tece seus mais eloquentes comentários sobre o mundo como ele o conhece, e é por meio delas que ele promove a possibilidade de um reencontro com a (quiçá uma reescritura da) história.

Essa constatação de uma resposta formal se anuncia já nos primeiros minutos de seu primeiro documentário, Site
2
(1989). Com um plano frontal e direto, Rithy Panh começa filmando o depoimento de uma refugiada cambojana que conta sua história de vida até o momento em que vai parar no campo de refugiados na fronteira do Camboja com a Tailândia, cujo nome dá título ao filme. O discurso é direto, estabelecendo uma guia que conduzirá o filme por todos aqueles espaços que ainda sequer começamos a desbravar e a quem a câmera de Panh aderirá com clara fidelidade – quando a narração é descritiva do espaço, a câmera também o será. Mas, conforme a fala avança, o diretor faz pequenos inserts de imagens fugidias que piscam, aparentemente desconectadas daquele pregnante relato: uma pipa que voa; plantas balançadas pelo vento sem foco ou nitidez que permita a aproximação da visão; um rosto que sai de tela antes que seja possível de ser apreendido; um garoto deitado no chão com o rosto encoberto pela sombra; uma bicicleta cortada pela montagem antes que ela consiga atravessar todo o quadro.

Enquanto a fala da protagonista traz o relato de sua prisão, a montagem é atravessada por estas imagens em fuga, impossíveis de serem totalmente apreendidas pelo olhar ou pela sistematização racional. É um procedimento simples, mas que já apresenta uma série de desdobramentos ao se confrontar com a matéria do filme. Em primeiro lugar, trata-se de redefinir esse relato não só como uma descrição objetiva, mas como uma vivência atravessada por desejos, projeções e fantasias que fogem da mera narração dos fatos. Em segundo lugar, trata-se de estabelecer logo de cara uma invasão do diretor no imaginário da personagem: é ele quem promove aqueles cortes, quem interage com o discurso da personagem, quem fabula sobre aquela experiência vivida. E em terceiro, é também a chance de, pelo cinema, dar um golpe na própria história: enquanto a concretude do mundo aprisionou aquela mulher àquele lugar, no cinema de Rithy Panh lhe é garantida alguma chance de fuga, de quebra de um sistema.

Esse sistema, porém, diz respeito tanto ao regime do Khmer Vermelho quanto ao regime de imagem do próprio filme: toda sistematização tem algo de totalitária. Se a história não reservou à personagem o direito de fuga, Rithy Panh não fará o mesmo com suas imagens e, no limite, com a experiência que o espectador tem delas. Daí a escolha por desfoques, momentos interrompidos, rostos encobertos, e tudo mais que não se oferece como presa fácil à violência de nossa própria compreensão.

Qual é o limite que, uma vez cruzado, transforma a oportunidade de fuga em entorpecimento? É aqui que Rithy Panh se revela um cineasta realmente sofisticado na discrição de seus procedimentos. Pois, em seus filmes, toda possibilidade de invenção, de fantasia, de encenação, deságua impiedosamente na realidade, na experiência concreta. Se filmes como Papel Não Embrulha Brasas (Le papier ne peut pas envelopper la braise, 2007), Os Artistas do Teatro Queimado (Les artistes du théâtre brûlé, 2005) e Uma Barragem Contra o Pacífico (Un Barrage contre le pacifique, 2008) – tão distantes dos filmes que a própria Marguerite Duras fez, justamente pelo predomínio do pragmatismo material em relação à abstração – têm um limite bastante claro, ele se dá mais pelo excesso de literalidade em sua demonstração de concretude, por ocasionalmente permitir que a autofabulação seja atropelada pela necessidade de reafirmar a materialidade de uma realidade que já se apresenta como material, do que por qualquer vocação para a abstração. Ao contrário: seus filmes mais fortes são justamente aqueles em que a abstração permite a materialização de uma realidade que não está mais ali, mas que, pelo seu próprio sacrifício, adquiriu o direito de ressurreição. É neste encontro que a câmera de Rithy Panh supera o demonstrativo e alcança uma potência que é plenamente cinematográfica: a capacidade de presentificar.

A presença do passado

Talvez não exista filme que melhor exemplifique isto do que S21: A Máquina de Morte do Khmer Vermelho (S21: la
Machine de mort Khmer Rouge
, 2003). Se, em 1955, Alain Resnais revisitava as ruínas de um campo de concentração para revelar o fora de campo, o passado que não estava mais ali, entre aquelas paredes, a intenção de Rithy Panh é justamente a de devolver presença aos atos, rostos, feições, gestos, corpos. Em um primeiro momento, há uma estratégia de choque: confrontar sobreviventes daquele campo de refugiados com seus próprios
algozes, os guardas que eram responsáveis pela manutenção da “máquina” (manutenção que incluía periódicos assassinatos em massa). Há, naturalmente, uma força palpável nesse reencontro, na chance de quem foi silenciado exigir satisfações da história. A resposta, porém, é dolorosa: éramos todos vítimas, dizem os algozes.

Como perdoar uma História que nunca lhe pediu perdão? Em S21, não há conciliação possível. O que há é a chance de atestar o sacrifício das vítimas, reforçá-lo pela ausência, e, ecoando uma fala do filme, fazer um ritual para que eles (os algozes) não voltem mais. Uma vez que, no mundo moderno, o cinema ocupou o lugar dos ritos, é pela encenação que essas mortes podem ser reafirmadas. O maior sinal de inteligência de Panh está em perceber que o drama real não está ali, no rosto e nas pinturas daquele solitário sobrevivente, mas, como em
Resnais, no que não está mais. O contraste, portanto, não se apresenta com o preso sobrevivente, mas com os próprios ex-guardas da prisão, que reencenam para a câmera a rotina de opressão que eles desempenhavam naquele mesmo lugar.

Carcomida pelo tempo, como a lata já sem fundo um dia feita de privada e o prédio já em estado avançado de
decomposição, a interação dos ex-carcereiros com o nada chama atenção justamente para a ausência, para todos aqueles presos que não podem estar presentes, pois foram sacrificados pela História. São vítimas da História, mas não vítimas do cinema. Em S21, esses corpos invisíveis são o que existe de mais presente – sensação primorosamente captada no extraordinário plano final do filme, em que toda esta ausência ganha, de fato, matéria,
imantada pela presença da câmera de cinema que lhe confere sentido.

A conjuração do presente

No cinema de Rithy Panh, a fábula não é uma purgação, mas uma conjuração, uma presentificação. Em O Povo de Angkor (Les Gens d’Angkor, 2004), Rithy Panh faz uma verdadeira genealogia desse trajeto da ancestralidade do mito à atualidade do rito. O filme começa com a materialidade plena de uma escavação. A partir dos desenhos remontados no encaixe dos pilares encontrados, um dos escavadores lê a narrativa do mito despedaçado, reconstruído como uma espécie de parque temático para turistas. Se esta breve sinopse sugere uma crítica pragmática aos descaminhos do mundo moderno, não demora muito a percebermos as reverberações daquele mito original – aparentemente frágil e incompleto – na vida cotidiana do povo local, de um garoto que vende bugigangas para turistas e conta aos deuses que foi abandonado pelos pais (e o mito que abre o filme fala justamente do abandono de uma criança) às ruínas do campo de guerra recente ainda impresso na comunidade rural que vive no local.

Não importa o quanto há de pureza documental no processo (em geral, os filmes de Rithy Panh são marcados
por uma “fala para a câmera” que nada tem de natural), mas o quanto o rito da própria encenação torna a presentificar o mito, conferindo-lhe corpo. Os melhores filmes de Rithy Panh – como os três citados aqui – são justamente aqueles em que o cinema é a ferramenta, a peça que faltava (como a peça do pilar encontrada no começo de O Povo de Angkor, cujo reencaixe dispara todo o filme) para refazer conexões que a história se encarregou de romper: o passado com o presente; o mito e o rito; o ancestral e o atual; o simbólico e o concreto – como fica claro em uma cena do mesmo filme, em que um homem explica o significado contido em uma série de brasões aparentemente opacos. No cinema de Rithy Panh, essa reconexão é uma forma de justiça histórica.

Contramão

Não é descabido generalizar que os nomes mais originais que despontaram no cinema recente são propositores de mundos que ainda não existem. Apichatpong Weerasethakul, Tsai Ming-liang, Kiyoshi Kurosawa, Claire Denis, Jia Zhangke… são todos cineastas que propõem não reconexões, mas novas conexões. São essas novas conexões que se manifestam a partir da constante ressignificação das coisas do(s) mundo(s) em Apichatpong,
do simbolismo em devir de Tsai Ming-liang, das inversões funcionais de Kiyoshi Kurosawa, da violência das elipses de Claire Denis, das ostensivas intervenções no real de Jia Zhang-ke. Nesse cenário, esse materialismo irredutível de Rithy Panh não surge sem algum desconcerto, em aparente descompasso com este cinema que parece inventar um novo possível.

A visão dos filmes de Panh em conjunto ressalta que não é uma questão de retratação com o passado, mas de perceber que não há chance de futuro sem o luto pelas histórias abortadas, pelas cenas incendiadas, pelas vidas interrompidas. Questão de karma, mas de um karma que não é individual, como se ao cinema coubesse a responsabilidade de escrever a história que os homens, na prática, não souberam escrever. Se em seus filmes permanece, por vezes literalmente, uma possibilidade de reencarnação, é preciso acertar as contas com o passado para seadquirir o direito a uma nova vida.

No contexto do cinema de Rithy Panh, novas conexões só são possíveis a partir de reconexões. Não é questão de voltar as costas para um futuro teleológico, mas sim de perceber que o caminho do artista é um traçado circular. E que, para Rithy Panh, a única forma possível de desbravar o futuro é se dirigindo ao passado, na contramão da História.

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