Publicado originalmente em Eduardo Coutinho, organizado por Milton Ohata (São Paulo: Cosac Naify, 2013) 649-7.
O canto dos mortos
É difícil resistir à tentação de se aproximar de um filme de Eduardo Coutinho à luz de sua obra pregressa. Difícil e talvez inapropriado. Se hoje é possível afirmar que Coutinho é o mais importante e influente diretor para o cinema brasileiro contemporâneo – seja o documentário ou o de ficção –, um dos dados que o colocam como marco incontornável é essa consciência de que um filme é capaz de, ao mesmo tempo, sustentar o peso do próprio corpo e projetar uma nova luz sobre o que lhe precedeu, sobre os degraus anteriores necessários para se chegar àquela altura na escada (mesmo que seja uma escada que, ecoando o cartaz de Moscou, filme de 2009, nem sempre leve para cima, por vezes dando de cara com uma parede).
Essa compreensão do diretor de cinema como alguém que esculpe um corpo de obra que se pensa retrospectivamente como uma sucessão de filmes individuais em camadas, é uma entre as contribuições inestimáveis que Coutinho protagonizou no cinema brasileiro de hoje. Este pode começar já dotado da perspectiva de que o cinema não se encerra em um filme. É como se o desejo de desvendar O Mistério de Picasso (1956), de Henri-Georges Clouzot, fosse visto simultaneamente do princípio para o fim, e do fim para o princípio, coincidindo a obra acabada com seu processo de feitura. Um filme de Coutinho nunca é somente um filme (embora seja, também e felizmente, somente um filme): ele é, igualmente, uma reflexão sobre a realização cinematográfica e uma perspectiva sobre a própria obra do diretor. Como no cinema de Abbas Kiarostami, de Tsai Ming-liang, ou de Yasujiro Ozu, há uma consciência aguda de como cada filme se insere dentro desse conjunto mais amplo, contínuo, desmontando falsos atalhos impostos pelos filmes anteriores, e já engatilhando armadilhas à frente. Há uma clareza de como esse novo passo aponta para uma direção que, ao mesmo tempo, ressignifica o sentido da
caminhada até aquele ponto e já aponta para um passo seguinte, futuro. No cinema de Coutinho é preciso estar em movimento, acontecer feito novo, mesmo que seja de novo, de volta – pois uma volta nunca é de novo. É preciso, sobretudo, não estar parado.
Nesse eterno movimento, As canções, seu mais recente trabalho, é uma espécie de nó. Mas, novamente, é um nó para trás, que dobra o presente sobre o passado antes de permitir que a corda se estique para o futuro. É preciso, porém, reafirmar sua natureza contingencial: é certo que essa perspectiva mudará com o filme seguinte, com a luz que ele projetará sobre o passo anterior, o que, ao mesmo tempo, reforça e ironiza a justa profusão de produção intelectual sobre a obra de Eduardo Coutinho. Se a palavra escrita fixa, congela um determinado momento, é certo que o cinema de Coutinho, profundamente cinematográfico, se congela somente em movimento. Todo texto escrito sobre os filmes de Eduardo Coutinho está fadado a ser datado e desmentido pelo porvir… mas, sabendo disso, como resistir ao impulso de escrever sobre eles enquanto ainda pulsam nesse trânsito presente, nesse estado de indefinição que o crítico ousa, por um momento que seja, definir? Como resistir ao desafio desse gesto de violência?
Muito do que foi escrito à época do lançamento do filme amarrava As Canções como um retorno específico a Jogo de Cena (2007). Em tese, temos o mesmo ambiente (o contraplano de um mesmo teatro – mesmo que objetivamente seja outro, bem outro), a mesma economia de enquadramentos, a sensação onipresente de perda,
o inigualável talento para a escuta etc. Essa afirmação do destino do gesto, porém, hoje reverbera como uma espécie de alívio de má consciência à incompreensão generalizada acerca de Moscou (talvez o maior filme de Coutinho, embora não tenham sido muitos os críticos a perceber essa grandeza). Afirmar As Canções como um
retorno a Jogo de Cena era como dizer que a dupla Moscou – Um Dia na Vida (2010) não passava de um período perdido que o próprio cineasta fazia questão de, agora, varrer para debaixo do tapete como um desvio malfadado, tentando retomar o fio de onde ele se perdeu. Mas se formos diretamente ao filme, à maneira como ele se mostra para nós, é notável que As Canções não se apresenta como “um típico filme de Coutinho” – aspas concedidas ao formato de entrevistas que muitas das críticas a Moscou lamentavam ter sido abandonado, como se o cinema de Coutinho fosse somente um formato. Ao contrário, no primeiro plano do filme, voltamos ao fundo negro com um rosto luminoso que canta para a câmera, sem contexto, motivação ou causa específica para isso. Voltamos, portanto, não às cadeiras vermelhas e aos relatos em bricabraque de Jogo de Cena, mas ao canto despido contra o fundo negro do palco que surgia com “Como vai você?”, já na parte final de Moscou.
Não é questão, porém, de excluir Jogo de Cena da equação – As Canções permanecerá como contracampo objetivo do filme de 2007 – mas de perceber que, ao lado de Moscou, os três filmes formam uma espécie de trilogia do palco, e que o movimento começado em um reverbera no seguinte. Vistos apenas em pares, a percepção do conjunto estará necessariamente incompleta. Se a aproximação exclusiva de As Canções com Jogo de Cena gerava certos desencaixes, é porque faltava uma peça essencial: quando Moscou é trazido de maneira mais incisiva para a equação, surgem outras possibilidades de fuga, de fricção, de ruído, de percepção. Surgem outras possibilidades de cinema.
Embora Jogo de Cena e Moscou tenham, à sua época, sido vistos como paradigmas para uma leitura mais horizontal da obra de Coutinho, eram ambos filmes que desatavam certos nós (alguns deles, cegos) que vinham condicionando a recepção de seus filmes. As Canções vem depois de tudo isso e, justamente por essa condição irrevogável de um pequeno ponto em uma trajetória, o que ele tem de igual é, por sua vez, completamente diferente, transformado pelo que o precedeu. As Canções não é uma repetição de Jogo de cena, porque ele vem depois de Moscou e Um Dia na Vida, e não é possível ser o mesmo, pensar o mesmo, ver o mesmo, após esses filmes. Todo retorno dá ao passado a possibilidade de reacontecer, só que já afetado pelo seu então desconhecido
porvir. Um nó, mas um nó para trás.
Antes de desatar o nó, porém, é preciso constatá-lo, passar o dedo pela corda até a topada inevitável com o laço que se amarra à certeza material do próprio corpo. Embora à época Jogo de Cena tenha sido visto como uma grande ruptura, seu impulso de destruição era, ainda assim, uma continuidade do projeto de cinema anterior de Coutinho. É flagrante que ele diz algo àquela altura ainda não dito – mesmo que só literalmente – sobre a natureza da cena no cinema do diretor, e que isso obriga o espectador a rever e a se reposicionar diante de tudo que havia visto em seus filmes até aquele momento. Não é feito minimizável para qualquer filme, em qualquer momento da história. Mas se pensarmos nas estratégias de filmagem e montagem, e não no que está diante da câmera (na cena), Jogo de Cena é um filme que segue perfeitamente a cartilha mais básica de sua obra – algo que mesmo Edifício Master (2002) e O Fim e o Princípio (2005) já trabalhavam com maior liberdade. Se Jogo de Cena localizava lacunas na armação da cena, essas lacunas já haviam sido evocadas de maneira concreta nos corredores de Edifício Master, impondo uma fenda do indizível à rotina de entrevistas que é retomada de maneira exclusiva no filme de 2007.
Moscou e Um Dia na Vida, nesse sentido, surpreendiam ao realocar as preocupações do diretor do trato com a matéria, com o que está diante da câmera, para aparecer justamente na câmera, na montagem, na escritura fílmica. Ou melhor: são filmes que deslocam o que, de fato, é a matéria cinematográfica. São, portanto, filmes somente de corredores, e são esses corredores que falam para a câmera. Não há mais apartamentos a visitar, pois, depois de Jogo de cena, não há lugares em que a câmera possa se instalar sem ter as pontas do tripé carcomidas pela instabilidade. O que resta é se colocar justamente no espaço entre esses lugares já previamente delimitados e não mais pensá-los como mero espaço de trânsito, entre um e outro, mas também como esfera de
construção. É preciso destruir, mas também construir, afirmava Enrique Diaz quanto ao desejo de Coutinho, em Moscou. Por meio da opacidade absoluta, era alcançada uma (nova) espécie de transparência.
Em As Canções, isso ganha uma outra dobra. Em primeiro lugar, porque não bastam apenas o canto e as histórias; é frequente a intromissão de Eduardo Coutinho, tentando entender o que leva as pessoas a ocupar aquela cadeira e o que elas tiram dessa experiência. Nesse sentido, o primeiro plano do filme resume todas as suas intenções: há a beleza material e bruta do canto embargado por lágrimas cujas razões àquela altura desconhecemos (e será possível conhecê-las, de fato?) e a pergunta de Coutinho se a personagem gostou ou não de cantar. É interessante, inclusive, como o filme se modulará de maneira diferente para cada uma das personagens, por vezes dando primeiro o canto, seguido do relato, por outras invertendo a ordem, ou, em casos
mais radicais, se afirmando satisfeito apenas com as canções, sabendo que elas carregam mistério mais forte sobre aqueles rostos do que qualquer explicação será capaz de elucidar. Há, portanto, um retorno aos relatos esburacados de Jogo de Cena, mas esse retorno vem com a atenção à brutalidade material solicitada por Moscou e Um Dia na Vida. Um canto terá direito de existir simplesmente por ser belo, e a força dessa beleza lhe é totalmente suficiente.
Em época em que o único realismo possível parece estar na incorporação da impossibilidade do realismo do próprio meio (Cópia Fiel e Um Alguém Apaixonado, de Abbas Kiarostami, sendo os exemplos cabais dessa nova “quebra de contrato”), tal defesa da matéria bruta ganha aura de revelação. Se Jogo de Cena é um filme da destruição, da autocrítica, Moscou e Um Dia na Vida seguem boiando na incompreensão generalizada muito por serem filmes construtivos, ativos em suas afirmações. Em tese, são filmes “mais intelectuais” (adjetivo usado
pelo próprio Coutinho em relação a Moscou), mas essa intelectualização, ironicamente, resulta em um contato na verdade quase primitivo, bruto, direto, menos mediado, mais suscetível à beleza das ondulações da própria matéria: um canto, uma fala descontextualizada, uma roupa colorida que berra sentido contra o grau zero da escrita de um fundo negro. São, portanto, o oposto da intelectualização, mas esse oposto parece só alcançável para um espectador que intelectualiza sua relação com o cinema a ponto de desconfiar de seus pressupostos. São trabalhos que solicitam um contato mais fluido e necessariamente material com a ourivesaria do diretor (e não um trabalho intelectual com a matéria diante da câmera), tirando de campo todo um arcabouço ético-histórico do documentário que dominava a aproximação de sua obra até aquele momento, para solicitar uma nova posição: um filme é algo que está na tela. Veja.
As Canções vem totalmente contaminado dessa necessidade de uma reeducação do olhar que parece plenamente condensada nesse fundo preto, nessa cortina de teatro que mal vemos como cortina. Há essa imagem recorrente das personagens que vêm e retornam a essa escuridão – terreno que é tanto o fora do filme quanto o fora da vida – e que se traduz novamente, de maneira literal, no relato: as canções que marcam são sempre um encontro com a morte, com a dor, com algo que já foi e não é mais, e ao qual é preciso retornar como aprendizado para se seguir em frente, vivo até não se estar mais (o filme, muito apropriadamente, termina com a cadeira vazia). Estar em cena é, sobretudo, um rito.
Esse recurso do canto luminoso sobre fundo negro – com sentido bem parecido ao extraído por Terence Davies em seu Vozes Distantes (1988), cineasta de caminhos tão diversos, mas que se cruzam com os de Coutinho justamente na dureza da aparência – é a síntese máxima de um movimento de depuração que parece ocupar todos os outros filmes de Eduardo Coutinho, e de sua postura inabalável ao guardar “as regras do jogo” na realização de cada filme (e há regras do jogo de fato em As Canções?). É como se, aqui, o diretor chegasse enfim à beleza despida de artifícios, à força cinematográfica que não mais depende de adornos, mesmo sabendo que, para se chegar a ela, artifícios sejam necessários. O cinema de Coutinho nunca foi um cinema puro, embora seu desejo seja o da depuração. Não há depuração maior do que um rosto que canta, impondo sua luminosidade particular às trevas de onde ele veio e para onde ele retornará.
A partir dessa depuração, dessa redução da cena ao mínimo, é possível atentar a outros sentidos, outras profundidades. As Canções – como Moscou, e definitivamente diferente de Jogo de Cena – é assombrado pela beleza, pelas cores berrantes das roupas que se afirmam na autonomia de cada uma das personagens, e que abrem uma clareira para que exista música na inevitabilidade da dor. “Deixei de ser um retrato em branco e preto e me colori um pouco”, afirma a última protagonista, com um vestido multiestampado que poderia, facilmente, servir como síntese ao próprio filme. Se a dor e a tristeza são inevitáveis, que seja permitida a beleza de que elas sejam,
ao menos, coloridas. Um pouco.
As Canções é um filme profundamente triste, embora inegavelmente generoso na maneira de retratar seus personagens no ínterim em que eles estão vivos, na tela. É impressionante como o filme “levanta” cada um daqueles rostos que se oferecem à câmera, mesmo quando suas histórias carregam perdas que se arrastam por décadas inteiras, por vidas inteiras, e pesam sobre semblantes nublados pela tormenta do que não foi. E, por mais que essas histórias sejam extremamente específicas, essa atenção de Coutinho às razões e às consequências daquele canto nos conecta a elas: podemos não ter cantado as mesmas canções, não termos sido marcados pelos mesmos eventos, mas a partir deles Coutinho chega a um sentimento comum, de alguma forma universal, que extravasa aqueles depoimentos. As canções não foram escritas especificamente para cada uma daquelas
histórias, mas… não foram?
Essa musicalidade alcançada por As Canções é algo que parece surgir no cinema de Eduardo Coutinho com Moscou. Por mais que Edifício Master fosse marcado pela vontade de falar de um outro mais próximo da instância enunciadora, em movimento diferente do dos filmes anteriores, havia ainda uma grossa lente de preconceitos e
predisposições a mediar esse embate, que se tornava forte e interessante também por isso. Até Jogo de Cena, as entrevistas de Eduardo Coutinho estavam muito mais próximas de confrontos do que de duetos. Havia, nos filmes anteriores, uma reticência nas perguntas insistentes de Coutinho que apontava para uma constante negociação,
para um jogo de permissões entre documentarista e documentado que buscava chegar a um mínimo denominador comum a ser manifestado nas falhas dessa relação.
Em As Canções, porém, esse jogo é reconfigurado. Pois, em primeiro lugar, As Canções é, mais até do que Moscou e Um Dia na Vida, um filme sobre controle, sobre a constante negociação do diretor não mais com os entrevistados, mas com sua própria posição. Se Moscou e Um Dia na Vida marcavam, de forma progressiva, o apagamento do personagem Eduardo Coutinho de seus próprios filmes – em Moscou, reduzido a uma breve aparição visual; e no filme seguinte impresso apenas na seleção e manipulação do material –, agora ele volta. Essa volta, porém, só é volta porque não é a mesma: Coutinho, o entrevistador, “morre” em Moscou e em Um Dia na Vida; e, depois dessa “morte”, qualquer renascimento implica “voltar outro”. O Coutinho personagem que aparece – principalmente pela banda sonora – em As Canções é, portanto, produto desse sacrifício anterior, e caminha, tanto quanto seus personagens, do fundo negro em direção ao proscênio, transformado em cena pelo trabalho de som.
Esse “novo Coutinho” que volta do mundo dos mortos parece ser o grande agente transformador de As Canções, que permite que se chegue não mais ao mínimo denominador comum, mas à máxima partilha de um momento. O Coutinho de As Canções não mais acentua as lacunas no relato do entrevistado; ao contrário, ele se instala nelas, se surpreendendo de maneira entusiasmada com os relatos (“você conheceu Orlando Dias?”), completando a letra esquecida de uma canção, e até cantando junto com uma das personagens. O recurso da entrevista, em As Canções, volta transformado em uma verdadeira celebração do encontro, em um filme que se dá em um palco, mas que também poderia se passar em uma mesa de bar.
Essa transformação pode parecer sutil, se pensada isoladamente. Em contexto, porém, seu efeito é espantoso. Lembro de que quando Júnior, o eterno craque do Flamengo, surgiu como comentarista esportivo, ainda na Sportv, era particularmente bonito vê-lo quebrar o protocolo e vibrar junto com o narrador, gritando “gol!” quando a
seleção brasileira colocava a bola para dentro. O tempo passou, Júnior “aprendeu” as regras, se profissionalizou como comentarista, aquiesceu ao formato da Rede Globo e calou essa vibração, limitando sua participação
às análises sóbrias e adequadas à pertinência de surgirem apenas quando solicitadas. Ouvir Coutinho cantar junto com uma personagem é como testemunhar a passagem da psicanálise ao ato falho, do controle ao descontrole, do domínio absoluto a um certo amadorismo… é testemunhar o desejo de desaprender para poder, quem sabe, aprender uma coisa nova. E se Coutinho se coloca tamanho desafio, e se cada personagem é capaz de sair e retornar ao mundo dos mortos para se oferecer em plenitude naquele breve momento sob a luz do cinema, é questão de justeza que o espectador esteja disposto a fazer o mesmo. E saber que essa necessidade constante de não estar parado é, no fim das contas, apenas uma irrefreável vontade de dançar.