Publicado originalmente em Hitchcock e o Cinema, organizado por Rafael Ciccarini (Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2013) 189-2.
Hitchcock sob o risco do real
Um Barco e Nove Destinos (Lifeboat, 1943) é um dos filmes mais peculiares dentro da vasta obra de Alfred Hitchcock. Ele se enquadra na subdivisão de seus “filmes teóricos”, denominação possível para obras regidas por um conjunto de restrições previamente estabelecido, ao qual a encenação precisa se adaptar e responder, prestar contas. Dentre esses filmes, o exemplo mais facilmente identificável é mesmo o de Festim Diabólico (Rope, 1948), com sua pré-determinação de ser uma ação sequencial transcorrida em um apartamento, que solicitava a tentativa de filmagem com a quase total ausência de cortes (embora outros filmes como Disque M para Matar, de 1954, Janela Indiscreta, do mesmo ano, e O Homem Errado, de 1957, também carreguem traços semelhantes). Um Barco e Nove Destinos tem um conjunto tão rígido de constrições prévias quanto Festim Diabólico: o filme se passa inteiramente em um barco; a câmera se limita, na maior parte do tempo, ao espaço interior do barco, sem recorrer com maior frequência a planos de contextualização; a decupagem confia quase exclusivamente em enquadramentos extremamente próximos, com apenas alguns respiros de conjunto em meio à sucessão de doses – estratégia que, naturalmente, faz pensar em A Paixão de Joana D’Arc (La Passion de Jeanne d’Arc, 1928), de Carl Dreyer. Ao longo de uma hora e meia, Hitchcock propõe a si mesmo essas obstrucões; Um Barco e Nove Destinos é o resultado dessa permanente negocIaçao do olhar do cineasta com as regras autoimpostas de um jogo que ele mesmo inventou. É, portanto, aquilo que se convencionou chamar de um filme de dispositivo.
Mas há outros dados mais determinantes dessa impressão de singularidade que não estão nas constricões prévias, mas resultam delas. Um dos traços mais claros dos melhores filmes de Hitchcock está em seu trabalho para distender o tempo das ações. Sua célebre alcunha de “mestre do suspense” apenas reforça esse vínculo aos poderes dos artifícios cinematográficos como ferramenta de expectativa. Em Um Barco e Nove Destinos, porém, tudo está desde o princípio em suspensão: não há para onde ir, ou ação possível além dos limites estreitos daquela pequena embarcação. Nenhum outro filme de Hitchcock assume a paralisia com tamanha radicalidade. Mesmo Janela Indiscreta contrastava a imobilidade do personagem de James Stewart com o extraordinário dinamismo do prédio que ele (e nós) passa a maior parte do tempo observando. Um Barco e Nove Destinos seria o contraplano de Janela Indiscreta, como se o tempo todo estivéssemos a observar nove James Stewarts presos em um apartamento, todos eles com as pernas quebradas, mas sem a possibilidade de olhar para fora. É preciso encher o quarto com outras coisas.
Essa situação tira qualquer possibilidade de força do conhecido e bem dominado repertório de artifícios do diretor. Se o grande toque distintivo do autor está na rnaneira como ele trabalha o tempo, usando toda sorte de manipulação para esticar cada grao de situação em uma construção cirúrgica de expectativa, o que fazer quando se tern tempo de sobra? Quando as personagens não têm para onde ir, como é possível imprimir essa passagem do tempo sern perder irremediavelmente a atenção do espectador (um rnedo que Mário Peixoto, por exemplo, claramente não nutria com seu
Limite, em 1931)? Em vez dos silêncios prolongados pela agonia, Hitchcock se entrega aqui a um jogo retórico, a um duelo verbal que preenche os espaços deixados pela ausência de espaço. Quando se tem tempo de sobra, não resta outra alternativa senão fazer o possível para matar o tempo, todo o tempo. Um Barco e Nove Destinos é, portanto, um filme de Hitchcock completamente às avessas.
Dada a infertilidade do terreno para o suspense, o diretor se entrega, com todas as forças, a refinar uma construção realista – e não deixa de ser curioso que isso resulte de um projeto teórico, e não de uma inspiração do mundo real. “Minha impressão era que, ao se analisar um filme psicológico corrente, percebia-se que, visualmente, oitenta por cento da metragem eram dedicados a primeiros planos ou semi-primeiros planos. Era algo não combinado, provavelmente instintivo entre a maioria dos diretores; era uma necessidade de se aproximar, uma espécie de antecipação do que seria a técnica da televisão”, diz ele a François Truffaut, no célebre livro de entrevistas. Como e por que um filme que parte de um pressuposto tão assumidamente técnico – ou de linguagem, se preferir – busca refúgio na construção de uma atmosfera realista? Qual é o lastro para essa escolha?
Realismo é um termo que reaparece algumas vezes nas entrevistas conduzidas por François Truffaut, mas que raramente se aplica à obra de Hitchcock de forma tão lisa quanto em Um Barco e Nove Destinos. Há uma flagrante busca por crueza – dentro de limites hollywoodianos da época, é claro – ao longo de todo o filme que parece muito mais próxima do Ford de Vinhas da Ira (The Grapes of Wrath, 1940) e do Renoir de The Southerner (1945) do que de um Os Pássaros (The Birds, 1963), por exemplo, ressaltada ainda pela ausência completa de música – outro traço de distinção dentro da obra generosamente musical do diretor. Há um contraste particularmente interessante entre os rostos sendo lentamente escavados pelo sol e o fundo em back projection que traz a Um Barco e Nove Destinos uma estranheza particular, como se um sonho fosse aos poucos minado pela incontornável realidade – como se Aurora (Sunrise, 1927), de Murnau, fosse infiltrado por Ouro e Maldição (Greed, 1924), de Erich Von Stroheim.
Essa bipolaridade não acontece, porém, à revelia do filme. Se o compasso específico do tempo solicita do diretor essa outra postura, ela também será irrigada por um trabalho de construção simbólica que não tem nada de natural. Quando Gus (William Bendix) tem sua perna amputada, a enfermeira Alice MacKenzie (Mary Anderson) se afasta do local da cirurgia carregando um dos pés de sapato do homem. O sapato é índice suficiente para que o espectador compreenda que a amputação foi concluída mas, mais do que isso, é também o estabelecimento de um jogo presente em todo o filme em que a parte representa o todo, e traz, consigo, muito mais do que o que aparece na imagem. O sapato é a perna amputada, assim como o barco não é apenas um barco, mas a representação direta do mundo em tempo de guerra (na época da filmagem, ainda em curso), e cada personagem desempenha não somente um papel, mas um arquétipo: o nazista alemão; o negro ex-escravizado; o burguês capitalista; o líder comunista; a intelectual com sonho de aristocrata; etc. Quando alguém age, em Um Barco e Nove Destinos, age à imagem e semelhança de uma classe. Ao menos sob o olhar de Hitchcock.
O filme é, portanto, uma tentativa de microcosmo, de usar o mínimo – esse universo em absoluta retração – para tratar do macro: o mundo, a política internacional, e um plano bastante pragmático de como combater o nazismo. São temas que reaparecem com outras máscaras em vários filmes de Hitchcock – como no primeiro O Homem que Sabia Demais (The Man Who Knew Too Much, 1934), em Correspondente Estrangeiro (Foreign Correspondent, 1940) e Interlúdio (Notorious, 1946) – mas que raramente foram tratados pelo diretor com uma frontalidade tão propositiva. A sensação é a de que a gravidade do momento o obrigava a tomar uma postura mais clara, arriscando uma intervenção mais direta no mundo fora da tela – e não seria disparate imaginar que Hitchcock desistiu desse caminho para os filmes futuros justamente por essa frontalidade ter sido tão mal compreendida na época, em especial pela crítica americana, que enxergou no filme simpatia pelo nazismo. Assim como o mar em back projection é confrontado com as ondas de água verdadeira que molham os olhos fundos dos atores (e há relatos de sofrimento real do elenco, resultando em costelas quebradas, sequências de pneumonias, e outras enfermidades que motivaram interrupções frequentes das filmagens), o universo ficcional de Hitchcock – diretor que sempre preferia o controle do estúdio ao confronto com o descontrole do mundo real – é também abalado pela dura realidade de seu contexto histórico. É preciso, enfim, tratá-lo sem a névoa de mistério que marcava seus filmes políticos até o momento. É preciso, enfim, ir às armas. Não à toa, imediatamente após Um Barco e Nove Destinos, Alfred Hitchcock faz dois filmes de curta-metragem como parte do esforço de guerra do Ministério da Informação britânico.
Mas esse lugar não é natural para o cinema de Hitchcock, decorrendo em uma espécie de bipolaridade que espelha no filme e é anunciada logo no primeiro dos nove destinos – aquele que nos espera já no barco, e que lá está antes de a câmera chegar –, o da colunista Connie Porter (Tallulah Bankhead), mulher emergente suscetível a toda sorte de penduricalhos. Toda a transformação de Connie Porter está na perda de seus objetos: primeiro, uma câmera; depois, uma máquina de escrever, um casaco de pele, um bracelete. A ênfase nos objetos – não só os de Connie Porter, mas de todos os personagens do filme – traz um curioso viés marxista para a situação política do momento, pois no filme um objeto não é apenas um objeto, mas também a materialização de um trabalho, de uma classe, de um estilo de vida.
“Ao atribuir a noção de fetiche à mercadoria, Marx ridicularizou uma sociedade que pensava que tinha ultrapassado a ‘mera’ adoração de objetos, supostamente característica das religiões primitivas. (…) O problema para Marx era, pois, não o fetichismo como tal, mas antes, uma forma específica de fetichismo que tomava como seu objeto não o objeto animado do amor e do trabalho humanos, mas o não-objeto esvaziado que era o local de troca” (Petter Stallybrass, O Casaco de Marx).
O único objeto dotado de poder mágico no filme é o bracelete de Connie, símbolo concreto de uma experiência vivida e que serve como arauto místico do possível final feliz do filme. Aos poucos, todos esses acessórios – filmados com os grifos dos planos de detalhe – vão desaparecendo, como se a questão de classe fosse regredindo ao mais primário naturalismo, até desembocar no assassinato frio e carnívoro do oficial alemão.
Nessa jornada de desprendimento rumo a um quase primitivismo social, é inevitável rever Um Barco e Nove Destinos hoje à luz de A Vida de Pi (The Life of Pi, 2012), de Ang Lee. No filme de Ang Lee, há apenas um protagonista, e todos os outros personagens (em maior ou menor número; os mesmos ou completamente outros) aparecem reencarnados em animais – ressaltando que a questão, para Lee, não é social, mas existencial. Mas, a despeito das diferenças mais sensíveis – a começar pelo desvio fantástico do filme de Ang Lee, que buscará no CGI formas de distender o tempo bem mais ostensivas do que o jogo de máscaras que se esconde sob os diálogos de Um Barco e Nove Destinos – em ambos os filmes há não só o mesmo processo de desprendimento material, mas também uma mesma imagem desencadeadora dessa regressão: se Connie Porter perde sua câmera e sua máquina de escrever, Pi perde seu caderno de notas. A ambos é negada a possibilidade de uma história que não seja oral, fiel a qualquer outra coisa que não à apreensão dos acontecimentos já distorcidos pela memória (o verdadeiro tema do filme de Ang Lee). Escrever a história é, também, um trabalho de ficção, e nesta encruzilhada o realismo em back projection de Hitchcock parece encontrar um lugar justo. Mas enquanto Ang Lee busca a transcendência – mesmo que ela seja uma escolha consciente, como indica a dubiedade do final do relato de Pi –, em Um Barco e Nove Destinos não há possibilidade de alívio final. O barco de resgate desponta no horizonte, mas não o vemos chegar. O filme urge acabar antes. No cinema de Hitchcock, a única voz capaz de narrar com propriedade os acidentes da História é a voz dos mortos que ela deixou pelo caminho.
Pingback: To the victor, the potatoes! – FABIO ANDRADE