Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2012.
Todo trabalhador das palavras é assombrado por palavras de outrem, por idéias lidas em páginas estrangeiras que, com o uso e a convivência diária, aos poucos se tornam inevitáveias às suas. Um trecho que me atormenta, e vira e mexe se coloca em meus textos, como se fosse impossível verbalizar certas impressões sem passar por ele, vem das “Seis Propostas para o Próximo Milênio”, de Ítalo Calvino. É um trecho que salta com facilidade das folhas impressas de papel para a tela do cinema: “A partir do momento em que um objeto comparece numa descrição, podemos dizer que ele se carrega de uma força especial, torna-se como o pólo de um campo magnético, o nó de uma rede de correlações invisíveis. O simbolismo de um objeto pode ser mais ou menos visível, mas existe sempre. Podemos dizer que numa narrativa um objeto é sempre um objeto mágico”.
Lançado em 2010, Foreign Parts, de Verena Pavel e J.P. Sniadecki, é um documentário filmado em 2008 e 2009 em Willets Point, triângulo de aço no coração do Queens, em Nova York, onde funcionam (ainda) cerca de 250 lojas e oficinas automotivas, que empregam cerca de 2000 pessoas. Com raras exceções, a mão de obra é essencialmente estrangeira – primordialmente hispânica, embora o filme ressalte a presença da comunidade judaica hassídica no local. Aos diretores, sobra a convicção wisemaniana de que, uma fez escolhido o lugar certo, basta uma câmera atenta e a ação do tempo para que ele se configure como espaço alegórico, e os objetos se tornem objetos mágicos. Em Foreign Parts, esse duplo registro permitido pelas imagens do filme aparece logo no título, igualmente referente às partes estrangeiras dos automóveis e ao próprio status de Willets Point dentro de Nova York e na vida das pessoas que ali trabalham. Tudo em Foreign Parts aparece imantado por essa dupla condição de espaço concreto e inevitável microcosmo. Ao mesmo tempo em que um relato sobre os pássaros que migram todo Verão para o estacionamento, e reproduzem ali antes de partirem novamente ganha contornos absolutamente alegóricos, vemos e ouvimos os pássaros cortando a imagem e solicitando o relato.
Fosse um universo escrito, criado, concebido, o Willets Point de Foreign Parts seria uma criação bretchiana. Mas a cada avião que corta o fora de campo rumo ao aeroporto de La Guardia sentimos a concretude da alegoria imposta pelo cotidiano, com o barulho das peças de metal arrastadas pelo chão, os cacos dos vidros estilhaçados dos carros empilhados, e a reluzente arena dos Mets, brilhando ao fundo como uma faceta nem sempre alcançável deste mesmo sonho americano. Se toda alegoria produz a virtualização do significado, não há olhos capazes de duvidar da concretude de um ferro velho, com suas poças de chuva e esgoto.
Uma alegoria, porém, não é uma figura de linguagem dotada de fascínio ou luz própria. Como toda ferramenta retórica, ela serve a um discurso, mesmo que de maneira não literal. A retórica é uma estratégia de convencimento, mas ao que pode (ou deve) persuadir a arte? Todo trabalhador das palavras é assombrado por palavras de outrem. Em A Política da Arte, Jacques Rancière fala de “Arturo Ui”, bastião da arte crítica de Bertolt Bretch. Fala da maneira como as conversas sobre couve-flor das personagens servem como alegoria ao nazismo, ao mesmo tempo em que permanecem como conversas de couve-flor. “Se os assuntos de couve-flor versificados têm a ver com a política, não é porque eles revelariam um segredo ignorado, mas porque eles fazem, a sua maneira, o que faz a política, porque eles embaralham a repartição estabelecida entre a poesia e a prosa, entre a língua dos assuntos públicos e a dos assuntos domésticos, entre os lugares, as funções e as competências”.
Willets Point é a clareira alegórica por reproduzir, cotidianamente, o misto entre privado e público, entre trabalho e vida que marca a trajetória dos estrangeiros que ali foram parar. Daí a austeridade não permitir perder de vista a figura humana em meio às tentações da geometria construtivista dos carros empilhados… daí a atenção acentuada dada ao casal que mora em um carro estacionado por ali, a uma festa de aniversário de uma mulher errante querida por todos que ali trabalham, e de um churrasco que termine com um pedaço de carne caído sobre uma chave de boca, no chão da oficina. Há, inclusive, um momento flagrante da consciência dos diretores nesse gesto: quando um dos personagens volta ao ferro velho e reencontra sua mulher após um tempo na cadeia, o diretor cumprimenta o homem em sua chegada e pergunta se pode filmar, restaurando ao evento uma privacidade que a promiscuidade entre vida e trabalho terminou por apagar.
Se há uma política possível em Foreign Parts – ou em Doméstica (2012), de Gabriel Mascaro, em I’m Not There (2007), de Todd Haynes, em Hotel Mekong (2012), de Apichatpong Weerasethakul, em Moscou (2009), de Eduardo Coutinho – ela está justamente na reconfiguração do sensível pela exposição cirúrgica das contradições do cotidiano. Os aviões que cortam o céu são igualmente a promessa de fuga e de chegada, o que traz a expectativa de uma nova vida e promete – com os mil dólares do casal que mora em um dos carros – a possibilidade de saída. Aos homens e mulheres que ali calharam de viver – e vivem como vivem todas pessoas, no lugar que lhes calhou viver – Verena Pavel e J.P. Sniadecki dedicam a atenção da câmera, e o cuidado na montagem de recompor a integridade da experiência – não apenas a alegoria que inevitavelmente brota de qualquer pedaço de chão onde um tripé de câmera é colocado, mas também a espera pelo marido que saiu da prisão, a alegria breve de uma canção no rádio a celebrar as ruas da infância em Porto Rico, o alívio de um trago na mesa de trabalho ou uma conversa farsesca sobre um blunt de freebase. Se, para os imigrantes que foram parar em Willets Point, a América é o local de trabalho, o filme lhes dá o direito de chamá-la de lar. Não é questão de adoçar o veneno, mas de reconhecer os vetores em trabalho que tornam tudo – açúcar e arsênico – menos discerníveis. A política possível em Foreign Parts se dá em um pequeno grande feito (a rigor, não mais que um dever adquirido sempre que se aponta a câmera para um lugar qualquer): reafirmar a complexidade do mundo em cerca de oitenta minutos.