Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2012.
A imagem como ontologia
Parada em Pleno Curso começa junto com a má notícia que o médico dá a Frank (Milan Peschel) e Simone (Steffi Kühnert): um tumor maligno toma parte vital de seu cérebro, impedindo qualquer tipo de remoção ou tratamento real. O consultório é claríssimo, hiper iluminado, a ponto de se ver os poros dos rostos abalados do casal. Frank tem apenas mais alguns meses de vida; não estará mais vivo para ver o aniversário de dez anos do filho. O médico mostra o tumor na chapa da tomografia e faz comentários sobre a área difusa ao redor dele. Tudo parte de uma palavra abstrata que, de tão inevitável, levará Frank à morte. O que é um tumor?
Em ABC da Literatura, Ezra Pound expunha com enorme precisão a tendência das línguas ocidentais a distanciarem as palavras dos objetos. Enquanto os ideogramas das línguas orientais são representação gráficas da imagem dos objetos que eles correspondem (e os conceitos abstratos são representados por representações de objetos concretos que se associam no mesmo conceito), em geral não temos correlação visível entre a grafia de uma palavra e sua aparência no mundo. As línguas ocidentais tendem ao abstrato e é justamente essa tendência que permite ao “tumor” passar incólume, trabalhando em sua função mortal sem que a palavra traga o peso de sua aparência.
O cinema, ao contrário da linguagem, é uma arte ideogramática. Ele lida justamente com as aparências do mundo e seus signos são impressões diretas dos próprios entes. Mas o tumor, especificamente, continua subterrâneo, escondido nas profundezas da cabeça de Frank. O cinema é uma arte da superfície. A partir do prólogo, acompanharemos a ação do inevitável, do começo ao fim, e a questão de Parada em Pleno Curso passa ser outra, já anunciada com a tomografia na primeira sequência do filme: como representar o invisível?
De fato, há uma história a seguir, contada de forma bastante comovente, sóbria e equilibrada por Andreas Dressen. Mas isso só se dá por o filme ser, de certa maneira, um amplo inventário sobre representações da interioridade das personagens, que ganha centralização incontornável (justamente por ser fatal) nesse tumor, essa imagem que expande dentro da cabeça, deixando rastros sem que possa ser vista. Assim como a iluminação ostensivamente direta do consultório manifesta a clareza e direção da fala do médico – “Conte aos seus filhos tudo que eles desejarem saber”, diz a Simone – Parada em Pleno Curso é um exercício que estica cada vez mais o elástico da representação, tentando encontrar novas e novas imagens para aquele mesmo ente. A clareza do consultório é substituída pelas vistas nubladas pela chuva que acumula no parabrisa do carro e pelo puntilhismo dos pixels nas imagens que Frank cria com seu iPhone. A vida após a notícia fatal é um pouco como uma ida frustrada a uma praia falsa, em que um punhado de areia contorna uma piscina sem ondas. A morte caminha tão lenta quanto uma tartaruga mas, quando nos damos conta, ela já atravessou a casa inteira. E sua mulher viverá o título, parando o trem que guia sob a neve da noite diante da obrigação de mudar de curso.
Parada em Pleno Curso é todo povoado por esses esforços de representação, capazes de transformar um tumor em um entrevistado de um talk show, pois a doença ocupa todos os espaços, se manifesta nos bilhetes que os filhos deixam pela casa, pois no cinema o texto é também imagem (“Isto não é o banheiro” colado na porta do quarto da filha mais velha, após o pai ter lhe deixado uma poça de xixi no chão), e na neve que cai lá fora, cada vez mais pesada. Frank canta, via “Love and Mercy”, de Brian Wilson: “I was lyin’ in my room and the news came on the T.V.. A lot of people out there hurting and it really scares me”. A música começa diegética e, em seguida se espalha pelas outras imagens, reverberando sobre os filhos que brincam no parque de diversões, vivendo aquilo que Frank já não pode mais viver. Em um mundo tão povoado por imagens – onde até as funerárias trazem esqueletos estampados nas paredes – resta a possibilidade de transformar os fatos em cena até mesmo na hora da morte (existe alguma hora na vida que não seja hora de morte?), e manifestar o último desejo que toquem Dead Man, do Neil Young, quando seu corpo é cremado. “O álbum inteiro”.
Em Parada em Pleno Curso, nem toda representação é justa. Umas são mais eloquentes do que outras, mas este é um revés inseparável da própria intenção. Andreas Dresen se coloca questão das mais antigas no cinema e se entrega de maneira admirável ao desafio, sabendo que há uma justeza ímpar em embaralhar a diegese com o mundo fora dela, em reaproximar imagem e objeto, se esforçando por contornar o afastamento imposto pela linguagem. E Frank deixa para trás seu iPhone e junto dele todos vídeos que fez, as piadas que conta sobre a própria condição, o testemunho daquele outro homem – o homem-tumor que agora deita em seu lugar – e tudo mais que seu filho assumiu carregar quando manifestou o desejo de herdar o telefone do pai.