Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2012.
Os grilhões da comunidade
Germania se passa todo em uma bucólica colônia alemã em Entre Ríos, na Argentina. Uma família que sobrevive basicamente da criação de animais vê sua propriedade ser invadida por uma espécie de peste. Chegamos ali quando a ação silenciosa já se instalou, com uma câmera que se movimenta por um galinheiro cheio de galinhas mortas. Uma das filhas aperta entre os dedos um ovo de casca mole feito borracha, prova do destino selado por vir. Aos poucos, teremos mais alguns indícios do alastramento desse mal – uma vaca morta sendo carregada por um trator, por exemplo, resulta em um dos planos mais fortes do filme – mas desde o começo é claro que a peste, aqui, tem sentido metafórico. Germania, afinal, não é um filme sobre vacas e galinhas.
Se olharmos apenas para o recorte espacial, surge imediatamente uma série de condições que o filme trabalhará com a passividade adestrada e o rigor de aplicação dos bons alunos. Visualmente, não estamos muito distantes do Luz Silenciosa (2007), de Carlos Reygadas, mas se lá a fuga possível estava no sublime, aqui os cadáveres dos animais trazem uma dimensão terrivelmente terrena à metáfora do filme. Há algo por demais flagrante – e que o filme por vezes acentua, sem muita necessidade – na maneira como os pais se comunicam no dialeto original e os filhos já adotam o castelhano como língua cotidiana… Sim, Germania é marcado por um conflito geracional, mas esse conflito não é somente pessoal. Ao contrário, há certa harmonia aparente na comunidade do filme, e Maximiliano Schonfeld não manifesta a inclinação de Michael Haneke em simular harmonia somente como preparação para a irrupção aleatória do mal. Afinal, já chegamos à vila no meio da crise, e o seu silêncio é justamente o que faz despontar certo desconforto em cada plano longo do filme. É como se a cada segundo essa peste invisível estivesse se alastrando, e o filme seguisse sem se atentar para ela, auto-envolvido em seu próprio movimento.
Oposta ao silêncio da peste, a música pontuará todas as cenas importantes, como um grifo fluorescente. Em determinado momento, a câmera de Schonfeld mostra um coral de senhoras a cantar dentro da igreja. O jovem Lucas (Lucas Shell) está do lado de fora, e essa parede que separa as duas gerações será alardeada mais tarde, à porta do baile da comunidade, quando uma das arianíssimas jovens diz não entender o porquê de todos os velhos ficarem girando em círculos no salão. Giram como as rodas dos carros e tratores que cortam o campo, e que a corrida atenta dos cachorros parece avisar esconder algo de errado. Será a música, também, que se manifestará como voz dissonante no canto solo do último plano, tão desgarrada do coral quanto a jovem que se livra dos grilhões da comunidade para poder dar voz à sua silenciosa gravidez mestiça.
A facilidade com que se decodifica Germania é uma boa condensação de suas virtudes e problemas. Schonfeld mostra um trabalho cuidadoso de encenação e construção de climas (levemente alimentado pela intelectualização das convenções do cinema de horror), um bom olho para enquadramentos, uma acertada escolha de luz que se coloca quase sempre na nascente ou no poente (dando conta do binômio que assola a própria comunidade) e uma habilidade clara em desenhar cenas que são igualmente simbólicas e concretas, sem deixar que um lado da equação anule o outro. São todas boas notícias se tratando de um diretor estreante em longa-metragem. Por outro lado, em um filme que fala justamente do dissenso, da possibilidade de se desgarrar do rebanho, Germania ainda parece por demais seguro, amadurecido à força, contente em se parecer com tantos outros filmes que seguem erigindo carreiras estáveis no circuito dos festivais, para serem prontamente esquecidos no momento seguinte. Por mais que fale da necessidade de um vôo solo, Germania é apenas mais uma voz em um grande e pouco memorável coral.