Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2012.
Claro e escuro
No começo, há um teatro, aplausos e cor. César Deve Morrer parte do fim, da obra já consumada e aclamada, para em seguida rasgar sua barriga e as vísceras que a constituem. Das cores para o preto e branco, dos aplausos para os ensaios, do teatro para o presídio. O primeiro movimento é de desconstrução, mas o filme não assumirá este como o único caminho; neste começo, não temos acesso tampouco à obra acabada, apenas ao fato de que ela foi acabada. Voltando para o passado após afirmar um presente, este novo filme dos irmãos Taviani se dedica igualmente à construção, pegando um grupo de prisioneiros e transformando cada um deles em personagens de Shakespeare. As idas e vindas do processo criativo de César Deve Morrer compartilham uma mesma via de mão dupla. “Aclamações de novo. Esses aplausos devem significar que novas honras vão sendo acumuladas sobre César”, diz Bruto a Cássio, no texto original de Shakespeare. “Há momentos em que os homens são donos de seus fados”, responde Cássio. “Não é dos astros, caro Bruto, a culpa, mas de nós mesmos, se nos rebaixamos ao papel de instrumentos”.
À parte o texto de Shakespeare, César Deve Morrer é uma afirmação do poder cicatrizante da arte. Isso não se dá, porém, somente pela sua proposta, na frieza que pode ser reduzida a duas linhas em uma folha de papel. É inevitável pensar em Moscou (2009), de Eduardo Coutinho, em Esse Amor que nos Consome (2012), de Allan Ribeiro, e nos filmes de Straub & Huillet, mas essas remissões – os valores compartilhados – apenas encorpam o que está na tela e que, pouco a pouco, permite que os atores – aqueles corpos em função de – sejam mais do que instrumentos. De um lado, há o grifo constante do potencial criativo dos detentos, a quem é permitida uma breve e drástica mudança de condição, ou ao menos uma projeção dos papéis cotidianos da prisão em uma realidade completamente externa e separada por grades da deles. De outro, há a sublimação dos arquétipos de Shakespeare, tão precisos em sua construção que aderem com absoluta inteireza a contextos tão diversos. Em dado momento, o preso que faz o papel de Bruto (Salvatore Striano) diz ter vivido uma situação exatamente igual à encontrada no texto, apenas dita com palavras diferentes. “Esse Shakespeare cresceu na minha cidade”.
São deslocamentos como esse que fazem o filme passar como a manifestação final das crenças do velho e ainda incontornável neo-realismo. O magnetismo das performances registradas só evidenciam sua pertinência. Pois o movimento mais impressionante do filme é justamente sua capacidade de, cena após cena, inverter posições sociais, seja nos próprios detentos, seja nos espaços. Paolo e Vittorio Taviani trabalham aqui como crupiês, embaralhando constantemente os papéis e redistribuindo-os de maneira a exigir novas regras para o jogo. A peça de Shakespeare não só reabilita o presídio ao transformá-lo em teatro… na verdade, acaba por revelar que a prisão é que é seu palco ideal. Ali, naquele espaço, os detentos podem experimentar o papel dos executores, desferindo juízos por entre as grades das celas, reocupando os corredores do presídio em irrestritos banhos de sol. Ainda assim, há os letreiros garrafais que estampam os crimes cometidos sob cada imagem do teste de elenco, sem qualquer intenção de retirar gravidade de cada vinco em cada rosto. A cada nova distribuição de cartas, o jogo de César Deve Morrer parece mais e mais complexo, mais e mais distante do discurso facilitador da arte como “medicina social” a que se refere Jacques Rancière.
Por mais que o teatro seja decisivo aqui, há uma diferença entre a pura ocupação teatral e o acréscimo da câmera, esse olhar flutuante que se coloca entre tudo. Em dado momento, ela segue Bruto de perto, às costas de sua caminhada por um corredor do presídio. “Quem vem às minhas costas?”, ele pergunta. “É seu espírito mal, Bruto”. Há algo de perturbador nessa equivalência que vai além do caráter fantasmático de toda imagem projetada – mais ainda se registrada por uma câmera de vídeo, como aqui. Neste caso, porém, o mal está mais próximo da idéia de perversão, do oposto simétrico, do diabo a soprar nos ouvidos que este mundo conhecido não é exatamente o único possível… é o fantasma a perseguir os presos com a idéia de que lá fora há uma outra vida.
A possibilidade de apontar para fora, dentro do mais absoluto confinamento, é, no fim das contas, uma maneira de reconfigurar esses espaços, sem, entretanto, negar-lhes a diferença. É um gesto político. A câmera é o único artefato em César Deve Morrer que pode existir tanto dentro quanto fora, em colorido ou em preto branco, fixa ou móvel… é o olhar que é outro, a expressão absoluta de alteridade, dotada de irrestrita mobilidade – logo, se colocando como oposto simétrico ao dispositivo de Paulo Sacramento em O Prisioneiro da Grade de Ferro. Sua importância política está justamente em ser a expressão visível deste outro, que remete às palavras que Shakespeare um dia fez Bruto dizer, e que seguem ecoando em cada fotograma aqui: “Não, Cássio; o olho a si mesmo não se enxerga, senão pelo reflexo em outra coisa”.