Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2012.
Cinema de laboratório
Não é nada incomum toparmos com declarações públicas de diretores que pouco batem com o filme que vemos na tela. Em entrevista à Cineuropa, Hélena Klotz diz que tentava se afirmar como interventora nas imagens o máximo possível. “(…) É por isso que as imagens são tão românticas, estão no pólo oposto à frieza”. Tamanha clareza de motivação bate com certo espanto, pois A Era Atômica lembra o cinema dos pais da diretora, Nicolas Klotz e Elizabeth Percival, justamente pela maneira gélida, quase científica com que lida com seu “objeto de estudo” – a saber, uma noite na vida de dois jovens amigos que perambulam por Paris.
Deixando de lado as intenções, essa frieza impressa em cada pixel é justamente o que mais interessa em A Era Atômica. Não que as imagens tendam à abstração; ao contrário, todo plano do filme é marcado pela busca de algo táctil, pelo movimento sensual que aproxima e afasta os corpos. Mas a fisicalidade, aqui, é a das placas de petri, não a das camas dos móteis. Hélena Klotz retoma igualmente, e com surpreendente equilíbrio, a vocação científica da câmera cinematográfica e o desejo narrativo que redirecionou seu uso. Estamos, de fato, diante de uma história humana, demasiado humana – a julgar pela parte final do filme uma história tão antiga quanto a própria humanidade, que apenas se repete sistematicamente em novos corpos, mas em uma mesma floresta ancestral– mas o filme o tempo todo chama atenção para o fato de que humanos não são mais que corpos, conjuntos de átomos a flutuar no espaço.
Essa inclinação científica, naturalmente, se expressa logo no título, e é reafirmada a cada novo ato de A Era Atômica. A cena, aqui, é uma espécie de laboratório científico, mas tirando da comparação tanto o peso do clichê do diretor que trata personagens como cobaias, quanto a liberdade de improvisação do termo no teatro. Os corpos reagem às luzes estroboscópicas da boate como se elas fossem raios catódicos, capazes de espatifar o sujeito em prótons e elétrons, em polaridades positivas e negativas.
Atração e repulsa. As leis da noite são somente essas e as personagens do filme oscilam de um pólo a outro sem muita lógica ou sentimento, seguindo um balé de humores que pode transformar, num piscar de olhos, a expectativa de um beijo em um tapa na cara. Para chegar a essa sensação, Hélena Klotz trabalha seu material com admirável despudor. Sim, A Era Atômica é frio e distante, mas a manipulação envolvente de imagem e (principalmente) som parecem afirmar o tempo todo que essa frieza nos diz respeito. Em um dos mais belos momentos do filme, os dois protagonistas finalmente saem no braço com um grupo de babacas que encontram na rua. Na irrupção da violência, a trilha-sonora é suavemente invadida pelo cândido dedilhado de “Lord Can You Hear Me”, canção do Spacemen 3. Se a expectativa de um beijo se transforma em um tapa na cara – ou vice-versa – é porque não há diferença entre os dois. A geração atômica ansia por contato, qualquer contato.
O resultado desse estudo de humores, tão imprevisíveis em seus desejos, tende a um profundo e inescapável individualismo. Essa sensação é reafirmada por uma opção bastante curiosa no som do filme, com diálogos que mais parecem voice over, pairando com tranquilidade perturbadora sobre as pancadas incessantes da música eletrônica. É como se os jovens noturnos dos dias de hoje se comunicassem em uma esfera à parte, acima da vivência corriqueira, sensibilidade flutuante em plácidas ondas sonoras. O desejo é uma forma de telepatia. No meio de todo o aparente caos que ameaça cada lúgubre sequência do filme, as personagens de A Era Atômica pairam feito seres sobrenaturais, desconectadas sonora e sensivelmente do entorno e uns dos outros. São mais vampiros do que anjos. A era atômica é a era do indivíduo, do nome do indivisível (a-tomo), do eu. É a era da eterna solidão.