Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2012.
Montagem e ressurreição
Em dado momento de Spalding Gray – Tudo Vai Bem, o próprio Spalding Gray – ator falecido em 2004 – define dois grupos de atores. O primeiro é o que atua como atividade, aquele capaz de virar uma chave mental que o coloca no estado de atuação logo antes de entrar em cena. O segundo, do qual Gray diz fazer parte, é o que ele chama de “ator ontológico”. São pessoas que já nasceram atuando e não sabem viver no mundo de outra maneira que não atuando, atuando, atuando. Logo fica claro o desafio de Steven Soderbergh: como fazer um documentário biográfico sobre esse segundo tipo de ator, aquele que tem distância e consciência cênicas suficientes para se definirem como atores ontológicos?
Todd Haynes talvez já tenha indicado alguns caminhos possíveis em I’m Not There (2007), mas no caso de um documentário estrito – mais ainda se tratando de um filme composto somente de material de arquivo, como é o caso – as soluções lidam com entraves mais claros. Não é possível, naturalmente, espatifar tudo em uma – ou várias – grande ficção, pois o desejo de biografia aqui é também o de lidar com uma possibilidade de síntese, de retomar o método e pensamento de Spalding Gray pelos materiais que lhe sobreviveram. Mas como separar o joio do trigo, o que é vida e o que é fábula, o que é encenação e o que é… encenação?
Estamos, naturalmente, muito próximo de um terreno profícuo de discussão do documentário e da ficção nos últimos anos, especialmente importante para a produção brasileira. Steven Soderbergh chegará ao cerne dessa discussão trabalhando apenas com material já existente, sem qualquer intervenção além da montagem que não se coloque às margens da diegese – o título e os créditos finais. O material, no caso, é de um escopo bem específico: entrevistas, alguns vídeos familiares e diversos registros dos monólogos de Spalding Gray. Mas esses monólogos foram experiências radicais de criação dramatúrgica, desenvolvidos pelo ator a partir de suas memórias de vida, em um gênero que ele batizou “jornalismo poético”. Para isso, Gray usava uma série de dispositivos – temas, títulos, palavras-chave, uma caixa cheia de lembranças, a possibilidade de chamar alguém da platéia ao palco e entrevistá-la – que disparavam os eventos em sua lembrança e ele, com brilhante automatismo, transformava em texto, palavras que compunham frases nunca escritas.
A escolha de ouro de Soderbergh é justamente não diferenciar em absoluto os materiais. Começamos o filme acompanhando um de seus monólogos, que será interrompido por trechos de entrevista, depoimentos de seu pai, para depois retornar, ressignificado. “Às vezes não sei se estou ficcionalizando”, deixa escapar o ator, em uma de suas entrevistas. Por que diferenciar entrevista de performance se o entrevistado em questão assume estar atuando ontologicamente, mesmo e inclusive quando coloca sua verdade em crise? Tudo se embaralha, norteado apenas por um desejo de estrutura. “Quando não se tem Deus, usa-se a estrutura como forma de dar ordem ao caos”, diz Gray sobre seus monólogos.
Spalding Gray cai, portanto, no terreno da farsa – justamente aquele em que Steven Soderbergh sempre esteve mais à vontade e pode criar seus melhores filmes. A montagem, embora aparentemente discreta na organização dos materiais, se apropria do processo de criação do próprio biografado, tomando nacos de vida e ficção, e combinando-os, devolvendo unidade ao que não devia ser separado. Se Spalding Gray criou uma modalidade tão particular de dramaturgia e representação justamente ao misturar autobiografia com invenção, ao filme resta somente recompor esse pensamento, embaralhando tudo que já é embaralhado, e devolvendo-o inteiro ao espectador. Pela montagem de Soderbergh, o pensamento de Spalding Gray volta à vida.