Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2012.
A justa medida das coisas
Filmes de episódios são irregulares por natureza, generalizantes por condição e frequentemente terríveis. 7 Dias em Havana, mais um filme de cidade, não consegue fugir à regra. Sua estrutura dividida em dias é frouxa e, se algo pode ser apreendido do conjunto tratado como um só filme, impressiona como os episódios se apegam sempre aos mesmos detalhes de observação e representação, às vezes mais expressivos no que eles escondem do que no que mostram – a insistência em encenar um capitalismo informal que se espraia sob os panos da vida cotidiana, por exemplo, é algo que dá as caras em praticamente todos os filmes e que se manifesta como etnocentrismo ideológico em um deslumbre com sua própria percepção tão superficial quanto a vontade de voltar pra casa com uma nativa debaixo do braço.
Indo para o particular, é difícil encontrar um número suficiente de particularidades, de fato: quatro dos sete episódios – mais esquetes do que curtas – são experiências difíceis de se completar, a despeito da curta duração, e não é por serem desafiadores em alguma medida. Ao contrário, são filmes que passam por seus temas como obrigações a serem cortadas da lista de pontos turísticos pra esta viagem: o estrangeirismo ignorante de bom coração no episódio de Benício Del Toro; o exotismo de bordel no de Julio Medem; o misticismo em luz recortada de Gaspar Noé (foto); e a aproximação mais justa, mas pouco menos entediante, da realidade em questão via gênero, na comédia de costumes de Juan Carlos Tábio. Por mais que pareça estranho falar da natureza generalizante da organização dos episódios e, ao mesmo tempo, se contentar em traçar breves comentários sobre a maior parte dos filmes, essa parece ser a única atitude cabível diante de olhares que se anulam em um conjunto tão homogêneo de preocupações, diagnósticos, culpas e procedimentos.
Dos sete dias passados em Havana, gastou-se a maior parte da viagem em pacotes turísticos pré-formatados que serão rapidamente esquecidos em um álbum de fotos na gaveta. Ainda assim, ao fim do passeio restam aqueles três dias em que se manda os citytours às favas para sair às ruas com a tentação de olhar e apreender o que está ao redor – sem ignorar os limites de sua bolha estrangeira e os dados históricos impressos em cada pedra da cidade. Parte do que faz uma viagem poder ser mais iluminadora do que o simples turismo é a possibilidade de confrontar duas instâncias de nossa experiência de mundo: perceber as diferenças no micro – como se dá uma gorjeta, que tipo de programa passa na televisão, que tempero se coloca na comida – e ao mesmo tempo celebrar as semelhanças no macro, no fato de que lá, do outro lado do mundo, há pessoas que também estão vivendo suas próprias vidas da melhor maneira que conseguem. Os dias que permanecem na memória após a viagem são marcados por esses solavancos da alma, e são eles que trazem as experiências dignas de serem compartilhadas com os amigos. São, no caso, os filmes de Pablo Trapero, Laurent Cantet e Elia Suleiman.
Afinal, se é impossível viajar sem sair de sua própria bolha, mais honesto mergulhar radicalmente nela, como faz aqui Pablo Trapero. Seu filme traz um Emir Kusturica bêbado, chegando à ilha para ser homenageado em um festival de cinema local. De fato, é uma representação crível do conhecimento acessível à maior parte dos artistas em qualquer espécie de turnê, saltando do hotel para todos os compromissos oficiais, e passando na verdade mais tempo no carro, ao lado do motorista que o leva de um lado a outro, do que em qualquer outro espaço. Trapero consegue implantar certa honestidade na figura do diretor que enche a cara e dá trabalho à produção do festival, protagonista que Kusturica encarna com notável entrega, por vezes rendendo boas gags. Mas o dado mais interessante no filme se dá fora dele: Kusturica passa boa parte do tempo ao telefone, tentando falar com sua mulher, na Sérvia. Não sabemos o que aconteceu, mas a reincidência faz crer que algo naquelas ligações incompletas se enrosca nos passos de bêbado do diretor/ator. A ação do fora de campo determina o campo e sua evidência no decorrer do próprio filme chama atenção à bolha da qual o artista inevitavelmente fala. Uma vez colocado na redoma, flutuando a oceanos de distância mas ciente de que pedaços importantes foram esquecidos em casa, melhor tratá-la com o cuidado e a atenção que permitem dizer não sobre este outro, esta Havana que o projeto obriga a se tornar “dentro”, mas sobre o “fora” do qual não se pode escapar.
Em sentido inverso, Laurent Cantet fecha 7 Dias em Havana com o episódio mais marcadamente analítico. Sua perspectiva estrangeira evita o olhar colonialista que supre, no outro, seus desejos de exotismo, e o trata como ilustração científica de um conceito. No papel, essa redução pode parecer terrível, mas por meio de um pequeno episódio em um terreiro de Oxum, Cantet consegue criar um rico panorama do híbrido entre capitalismo e socialismo que, na América Latina, encontra harmonia justamente no misticismo. A reunião da comunidade em torno da reforma do terreiro, a partir de um sonho em que Oxum aparece e diz o que precisa ser feito, mescla o trabalho coletivo em prol da própria comunidade com o mercado capitalista informal que, de forma ou outra, aparece em praticamente todos os episódios aqui. Pelas curvas sinuosas de um filme aparentemente simples e alegre, Laurent Cantet parece retomar a leitura da sensibilidade latino-americana feita pelo seminal escritor cubano José Lezama Lima, na qual o misticismo se sobrepõe à linguagem e à política. Toda aquela comunidade se movimenta pelos desejos de Oxum, coberta de ouro e rendas amarelas, pois, mais do que um sistema econômico, impera a máxima de Lima de que “la imagen es la realidad del mundo invisible”.
Se Trapero faz um isolamento do ponto-de-vista, e Cantet pensa o social como um conceito, é inevitável a sensação de que ambos os filmes separam o inseparável, como as velhas discussões que rodavam em busca do próprio rabo separando forma de conteúdo. É justamente por reconciliar esses dois pontos, por restabelecer as implicações entre o que não poderia ser separado, que o cinema de Elia Suleiman se firma como um dos mais fortes e propositivos no panorama mundial contemporâneo. Em seu episódio, o melhor de 7 Dias em Havana, Suleiman desembarca com todo seu repertório de gags, a frontalidade que lhe é característica, o olhar arguto que ao mesmo tempo traduz e estiliza o cotidiano, as piadas com quebra de eixo, a decomposição do espaço como uma coreografia claudicante, e, claro, sua inconfundível presença cênica. Mas, para um cineasta tão marcadamente local, a simples mudança de país faz com que essas velhas estratégias se renovem no encontro com as questões daquele outro espaço. Daí, nascem momentos fortíssimos, como um discurso interminável de Fidel Castro na televisão, uma epidemia de falta de gasolina, um funcionário de Embaixada que soletra usando nomes de países (Elia vira “Egito, Líbia, Israel, América”, em típico curto-circuito suleimaniano), uma senhora que se desgarra dos casais apaixonados e caminha em direção ao mar. Dos filmes de Elia Suleiman, saímos com a impressão de um cinema mais simples, e um mundo mais complexo do que percebíamos antes. Difícil imaginar não ser esta a justa medida das coisas.