Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2012.
Um filme de Ana
Um Filme para Dirceu começa com dois sujeitos fantasiados de caubói. Um deles veste uma camisa dourada que grita protagonismo; o outro incorpora o matuto que servirá como Sancho Panza, bom parceiro de aventuras exatamente por sua incapacidade de ver os moinhos como dragões. O sonhador da camisa dourada convence o amigo a fugir daquele mundo e ir buscar a bela vida tocando gaita de mão. A cena é interpretada com acentuada tipificação dos atores, como esquetes do Zorra Total ou do Hermes & Renato. Mas tudo isso é mediado por um mascaramento difuso que recorta a imagem em “cinemascope”, um barulho de projetor rodando que toma a banda sonora, e uma tonelada de falsos riscos em uma falsa película. Tudo é exposto como falso.
O filme, portanto, começa como farsa, algo que será reforçado no momento seguinte: já sem os riscos, o falso projetor em silêncio e uma imagem que adquiriu o direito de tomar toda a tela 1:1.77 do vídeo em alta definição, Dirceu – o homem da camisa dourada – fala de como imagina o filme que ele gostaria de fazer. Entramos em terreno bastante conhecido do documentário brasileiro recente, no qual o choque entre documentário e ficção é capaz de revelar o mundo de um personagem digno do título de um filme. Mas Ana Johann parece movida, sobretudo, pela necessidade de usar todo tipo de artifício para demarcar terreno: o filme de Dirceu é um outro. Este é o filme de Ana, e os desejos e aspirações do protagonista interessam apenas enquanto reveladores de sua intimidade – assim como as personagens cantam nos filmes de Eduardo Coutinho porque se revelam pelo canto. Em um passeio de carro, Dirceu aponta os lugares importantes de sua biografia; a câmera de Ana Johann nunca esboça movimento, concentrando-se somente no rosto do protagonista.
O roteiro de filme que ele propõe é uma mistura de Um Morto Muito Louco (1989) com Superbad (2007), surgido de situações relacionadas à própria vida, com rumos inventados que reescrevam sua história. “Tem que ter uns três romances”. Cinema, para Dirceu, é aventura. Mas se é necessário demarcar terreno, deixar claro na pele do vídeo que o filme para Dirceu é o filme de Ana, o que seria o cinema para a diretora? “Você acha que fazer cinema é fácil?”, pergunta ela, enquanto filma Dirceu deitado ao lado de uma moça nas primeiras horas de uma manhã de ressaca da intimidade. “E você acha que tocar sanfona é fácil?”, ele rebate. Dirceu se vira, vê a câmera rodando e pede que ela desligue logo aquele troço.
Mais de uma vez, Ana Johann expõe casualmente o desejo de acompanhar Dirceu de maneira mais intensa. Fala em filmá-lo por vinte anos, em um tipo de aposta de ambição razoavelmente comum no documentário, movida pela intuição de que talvez nenhuma ação seja tão importante quanto a do tempo (e, consequentemente, da morte) sobre o corpo. Entramos na seara do cinema direto, mas Um Filme para Dirceu tampouco se concentrará na observação. “Daqui a pouco vão me filmar até cagando”, responde Dirceu.
Falamos em Eduardo Coutinho, cinema direto, mistura de registro e de um personagem-título como tantos outros no documentário brasileiro recente… mas Um Filme para Dirceu já se insere na perspectiva ultra-contemporânea de um documentário sem cânones, capaz de absorver diversos paradigmas para dar conta de uma relação supostamente nova com o mundo. Documentários que, em suma, se acreditam pós-modernos. Mas esse pós-modernismo passa, aqui, pela afirmação do sujeito que olha – uma vez que Ana Johann é também personagem, capaz de dirigir a ação e o curso da história ao simplesmente estar presente, como a câmera de Jean Rouch disparava uma possessão espiritual em Les Tambours d’avant: Tourou et Bitti (1971).
Quando Dirceu tem a notícia de que um de seus romances (e a diretora é a primeira a perceber que no documentário que ela faz provavelmente teremos mais do que três) terminou em uma gravidez inesperada, diz que foi praga da diretora. O encontro entre campos é exposto em seu potencial incestuoso, em uma mistura de subjetividades – o homem-ficção e a diretora-documentarista – que pode chegar a uma terceira síntese. Pois se falamos de encontro e de subjetividade, falamos de um relação regida por parâmetros mais ou menos claros que valem para ambas as partes envolvidas. “Questão de justiça social”, diria Miguel Gomes. Mas a mistura, aqui, é força de um acaso que precisa ser controlado. Nesse sentido, é bastante expressivo que Ana Johann responda a um instinto de aparecer no vídeo, mas quase todo o tempo esse encontro com Dirceu na imagem se dá apenas fora da imagem, em conversas por telefone em que a diretora se filma em seu gabinete. Mais expressivo: são raros os momentos em que ela não está de costas para a câmera.
Se é necessário separar o filme de Dirceu do filme do Ana, para sobreviver a essa separação é também necessária uma entrega, um devassamento da intimidade de quem olha, e que esse devassamento seja, no mínimo, proporcional ao ritual de sacrifício selado entre a câmera e quem é filmado. Se filmes recentes como Laura, de Fellipe Barbosa, ganham força na maneira como misturam todo tipo de registro na tentativa de alcançar a representação de uma relação espatifada, isso só é possível porque o diretor está também disposto a se espatifar, se igualar, se expor na desigualdade da relação. Sem isso, restam apenas filmes desiguais, descomprometidos, desinteressantes. Ao contrário do filme de Ana, o filme imaginado por Dirceu nasce da consciência da necessidade de habitar a cena, de se expor, de se comprometer. Mesmo permanecendo não filmado, ao fim da sessão não restam dúvidas de que, por princípio, seria um filme mais justo.
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