Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2012.
O peso da rarefação
Noites de Reis começa com a chegada da folia de reis à casa de Dora (Bianca Byington). O mestre da folia pede licença à “patroa” e, entre sorrisos de todos os presentes, começa a rimar. As rimas aos poucos vão se entortando sob seu próprio peso, ganhando gravidade ao contar a história da morte do filho da dona da casa. Os rostos ao redor vão se transformando lentamente, a cada novo verso proferido. A sala é tomada por uma tensão latente, que se expande conforme aquela espécie de aedo se aproxima do já sabido final da história. Com os olhos inchados do choro porvir, Dora observa em silêncio, rosto retorcido pelas lembranças. O lar que parecia feliz e receptivo já não é mais o mesmo.
A descrição da cena de abertura do novo longa de Vinícius Reis é importante, pois sua violência sutil ecoa inevitavelmente por todo o resto do filme. O confronto entre um mundo branco, civilizado e harmônico é abalado por aquele pé na porta de uma manifestação de cultura popular que insiste em lembrar que fantasmas não podem ser enterrados. Para quem acompanha com alguma dedicação a produção brasileira, é inevitável a lembrança de Nego Fugido (2009), belo curta-metragem de Cláudio Marques e Marília Hughes. Mas enquanto Nego Fugido vai às profundezas do tremor no outro, Noites de Reis muda radicalmente de tom e intensidade ao final de seu prólogo – prólogo tão forte que sacra ao resto do filme a inevitabilidade de um anticlímax.
Se até aqui parece que Noites de Reis sofre de problema parecido de Boa Sorte, Meu Amor, as soluções buscadas por ambos os diretores são bastante diferentes. Enquanto Daniel Aragão usa a construção de efeitos no limite do desespero, Vinícius Reis parece pressentir que o anticlímax pode ser uma boa ferramenta, sem temer assumi-lo de peito aberto. Pois Noites de Reis é todo feito de um binômio: destruição e restauração. Essas duas forças estão estampadas nas paredes de Paraty. “Encontramos cada coisa sob as pinturas novas”, diz o restaurador interpretado por Flavio Bauraqui. O movimento inicial do filme é justamente o de arrancar as tintas da parede (cena que a personagem de Enrique Diaz tentará tornar literal mais à frente) para que o trauma passado, escondido sob aquela aparente ordem e decoro, possa, aos poucos, retomar a superfície.
A continuidade de Noites de Reis rasteja de modo tranquilo, como se toda ação fosse de fato uma reverberação – cada vez mais distante – daquele primeiro ato. O luto paira sobre todos os gestos, lembrando o arrastar mórbido da vida tranquila de um O Doce Amanhã (1997), de Atom Egoyan. Vinícius Reis domina o melodrama com segurança: temos uma decupagem firme, Bianca Byington em bom momento, e o retorno de um pai (Enrique Díaz) que volta ao lar depois de anos de desaparecimento após a morte do filho. O tempo e os fatos fazem pensar em uma versão mais discreta de Paris, Texas (1984), de Wim Wenders, trocando o gosto pelas composições armadas por uma cena mais naturalista, focada nos atores e na nuances das relações entre eles. Mas, aqui, a morte do filho (e há paralelos a serem traçados entre pai-filho e mãe-filha, que renderiam outros textos) é sublimada pela hipótese de transcendência e reintegração com o mundo levantada pela filha mais nova (Raquel Bonfante): as cinzas do irmão foram jogadas no mar, evaporaram e, com a chuva, se reintegraram ao mundo – podendo encontrar o sublime com a volta do pai ausente à rabeca da Folia de Reis.
Tudo isso parece estalar no papel, pois no papel Noites de Reis é um filme planejado com cuidado e intenção. O problema é que o cinema não é só papel e, ao reencontrar os corpos e o mundo, o planejamento de dramaturgia esbarra em entraves mais concretos, traduzidos por idéias mais abstratas como ritmo, equilíbrio, harmonia e impressão de realidade. Pois os melhores diretores a trabalharem com o peso da rarefação de ações são, normalmente, os que tomam emprestadas ferramentas do cinema de gênero capazes de dilatar essa espera como expectativa. Vinícius Reis é um cineasta com talento para momentos de intimidade, e são eles que mostram diretor e elenco à vontade com o material que trabalham. Mas quando vai ao alegórico ou ao rarefeito, o filme raramente consegue construir a atmosfera necessária para que a alegoria se disfarce de dramaturgia e se apague na impressão de realidade. É difícil acreditar na atuação de Raquel Bonfante, por exemplo, e o fato de seu papel ser tão crucial ao desenrolar dos acontecimentos acaba pondo por terra a alegoria, justamente por ela gritar sua própria condição e seu texto soar tão cuidadosamente colocado como chave que proporciona aos outros personagens a superação de sua condição.
De certa forma, são problemas parecidos aos que encontramos – em menor proporção, justamente pela diferença de arco dramático – em Eles Voltam, de Marcelo Lordello. Em ambos os casos, temos diretores com evidente talento de dramaturgia (embora em chaves bastante diversas) que fazem filmes falhos justamente por não conseguirem empregar esse talento de forma regular e rigorosa em todos os elementos do filme. Mais grave: na montagem, não parecem encontrar as soluções que contornem esses problemas, mesmo que para isso seja necessário reescrevê-lo por inteiro. Se, ao longo da projeção, sentimos a pontada da falta que faz o humor arguto de Praça Saens Peña (2008), filme anterior do diretor, não é exatamente por este novo filme falhar em ser diferente; mas sim porque, lá, Vinícius Reis conseguia produzir uma sensação mais lisa de inteireza que Noites de Reis, nos trancos de sua irregularidade, nunca chega a realmente alcançar.
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