Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2012.
A revolução moribunda
Teria sido uma bela morte. Era este o plano: se oferecer em sacrifício, no martírio de quem troca a vida pela possibilidade de oferecer um futuro que não seria vivido, o gesto de auto-afirmação que vem com toda doação suprema, como a declaração de status quo escondida na caixa do melhor dos presentes. Este é o meu sacrifício e há satisfação eterna nesta doação. Ofereço a vida e a recompensa é o sublime. E com a morte, não será preciso lidar com o fato de que os maiores gestos de generosidade são também as mais agudas manifestações de vaidade. “Os que se suicidaram tiveram uma lucidez enorme”, ouvimos em dado momento de A Memória que me Contam, de Lucia Murat. Mas nada caminhou como planejado e a desgraça maior e mais imprevista aconteceu: sobrevivemos. Sobrevivemos a nós mesmos, como as personagens do filme declaram no peso de cada passo dado.
Caso persistissem dúvidas quanto ao ponto de vista, Lucia Murat se coloca em cena muito claramente na cineasta interpretada por Irene Ravache, em A Memória que me Contam. Tamanha clareza já lhe guarda lugar de destaque na obra da diretora. Estamos diante de um filme falho, decadente, descarnado, mas, ao mesmo tempo, justo, brutalmente justo. Foi-se o desejo de abraçar o mundo de Quase Dois Irmãos (2004) e Maré (2007), pois o mundo há muito fugiu do controle, embora só agora isso tenha sido percebido. Mas há uma enorme lucidez nesse atraso, nesse reconhecimento dos limites de sua apreensão, nessa dificuldade em lidar com tudo que ainda respire. “Li o ‘Manifesto Comunista’ aos doze anos de idade”, mas quem venceu foi Nietzsche! E agora resta olhar pro mundo por entre os óculos de acetato, repetindo os bordões que fazem a vida parecer um pouco mais com uma velha peça do CPC da UNE, bebericando em melancólicas taças de Bordeaux, mas tapeando as papilas gustativas para que o vinho caro lembre o gosto do vinagre.
O cinema, quem imaginaria?, também sobreviveu aos anos 1960. A profusão de espelhos, de reflexos, de recortes, de quadros dentro do quadro em A Memória que me Contam tentam se atualizar, manifestar a parcialidade, dar conta do triunfo do perspectivismo, mas tudo pela ótica de alguém que claramente não opera por esta lógica. As pequenas tentativas de fuga do roteiro, a falta de jeito em lidar com os filhos, com o homossexualismo, com a arte contemporânea, com o político que deixou de professar ideologia para fazer política de fato… a percepção de que tudo que restou da revolução foi apenas um fantasma cool, a ser encarnado no rosto decidido e no corte de cabelo perfeito de Simone Spoladore… como em Nome Próprio (2007), de Murilo Salles, tudo aqui aponta pra dificuldade, pra limitação da cineasta em lidar com o que é novo e lhe atravessa sensivelmente, mas passa feito um atropelo, sem deixar marcas ou impressões no corpo a não ser a dor do solavanco. E essa mesma dureza, essa dificuldade em lidar com tudo isso que se tornou necessário lidar, é tão expressiva aqui quanto o desejo de respiro, de transcender uma condição, de flutuar como uma bolha de sabão, de levantar da cadeira de onde era possível esquadrinhar o mundo, pois a cadeira há muito já foi tirada, e a panturrilha começou a queimar a ponto de que se tornou doloroso seguir fingindo que a cadeira continua lá.
Em dado momento, o filho da protagonista-alter ego vai ao X da questão: “Mãe, você realmente acha que vocês fizeram tudo”. A resposta do filme é algo como: sei que não, mas acredito que sim. A Memória que me Contam sobrevive e padece nesse limbo entre o fato e a crença, a percepção e o sentimento, o choque de realidade e a auto-ilusão. E se sobrou apenas um fantasma, o melhor é projetá-lo em uma sequência de slides, sobre um caixão que escoa lentamente pra tela do cinema, em uma dobra metalinguística final que inclui nossos incômodos, simpatia e até a ponta de pena que vira e mexe coça nossos ouvidos ao longo da sessão. Nessa impossibilidade de ser outro, o filme é o que é, o que pode e consegue ser. Esta inteireza moribunda desfila à nossa frente, e a única reação possível é observá-la em sua passagem, com o silêncio do luto pela morte de alguém que não conhecemos.