Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2012.
Padronização do extraordinário
No passado, a crítica já tomou a liberdade de demandar cinemas, posturas e tipos de filmes. Hoje, a onipresença das câmeras HDSLR reduz sensivelmente o nível de exigência: queremos filmes em foco. A sensação de encarar uma projeção como se tenta ler um texto impresso que por acidente acabou na máquina de lavar, esquecido nos bolsos da calça, é onipresente em Kátia, de Karla Holanda. Mais do que os desfoques deslumbrados com as possibilidades plásticas dessa tecnologia recente, o que incomoda aqui é principalmente a falta de foco no que deveria estar em foco, a impossibilidade de ver de fato o que o filme deseja mostrar.
Tal afirmação poderia ser apenas uma observação técnica, não fosse ela também uma sedutora metáfora para um problema mais amplo do filme. A sedução da linguagem é traiçoeira, mas por vezes se faz urgente ceder aos seus encantos: a falta de foco em Kátia é um problema ontológico. Não muito diferente de Um Filme para Dirceu (2012), o filme de Karla Holanda se vale de todas as estratégias possíveis para dar conta dos vinte dias de convivência com Kátia Tapety, a primeira travesti eleita para um cargo público no Brasil. A concentração, com nome registrado, em uma única personagem talvez pudesse ser âncora de um relato mais direto, limitado pelas possibilidades daquele curto e intenso tempo de convívio. Mas dos depoimentos passamos à observação, à performance, aos relatos da relevância da história de vida da protagonista, sem falar no sempre presente gênero dos documentários de grandes personagens (aqui, tanto no sentido cênico quando histórico). Kátia é como Estamira, como Santiago, como Laura, como tantos outros seres transformados em títulos pelo documentário brasileiro recente.
Talvez seja questão de justeza que uma personagem que não se adequa aos mais estanques padrões sociais – que se diz homem, mulher, pai, mãe, político, fazendeiro, ativista, tudo… – ganhe, na biografia de um encontro, também um tratamento múltiplo, que desafie críticos e espectadores a encontrar unidade nessa multiplicidade. Mas Kátia não é exatamente desafiador. O que conecta os diversos registros do filme é uma lógica só, tirada diretamente da televisão: a lógica do espetáculo. Mas a lógica do espetáculo é oposta a toda a multiplicidade que Kátia representa, pois “(…) a unificação que realiza não é outra coisa senão a linguagem oficial da separação generalizada. (…) o espetáculo constitui o modelo de vida socialmente dominante” (Debord).
Kátia se nutre da onipresença dos tempos fortes: a personagem canta porque o canto é o atalho para a alma. Mas a lógica do espetáculo não prevê alma, apenas a espetacularização da presença da alma. De preferência, que leve ao riso, mas sem o peso, a culpa, o preconceito, as consequências do riso. Na ausência do sagrado, o espetáculo se assume como atividade balsâmica. Com justiça, Kátia Tapety é figura até certo ponto fascinante, auto-envolvida o suficiente para romper as barreiras entre vida e performance, e também para se comover com as particularidades de sua própria biografia, daquilo que a faz singular. É o tipo de pessoa capaz de se ver e de viver como personagem, de assistir a própria vida como uma história e genuinamente chorar com a improbabilidade de suas tristes curvas. Kátia, o filme, não embarca nessa maneira tão particularmente dual de ver o mundo, a não ser como espectador de um espetáculo, como alguém que afirma a ordem social vigente ao se portar como se estivesse diante do extraordinário.
Nessa bagunça de filme que tudo pode e pouco quer, sobram portas abertas para filmes mais interessantes que nunca serão feitos: o flerte constante entre Kátia e o técnico de som, que fazem pensar na potência de um Grey Gardens (1975); a fatia tensa da relação de Kátia com sua família; a sua atuação cotidiana na vida política. Esses filmes se sugerem no déficit de atenção que pouco pensa e tudo sente, que já sai de casa com idéia pronta de o que vai encontrar e troca a articulação e a proposição em nome de rápidos e providenciais alívios cômicos. A potência do filme é dispersada pela crença na auto-suficiência dos solos que buscam sempre o dó de peito, e que fazem de todo travesti um transformista. Em Kátia, os bons momentos que existem – como o encontro surreal com um vendedor do Saara, no Rio de Janeiro, que sequestra a cena em um monólogo – seriam bons momentos em qualquer lugar, dentro e fora do filme. E é exatamente essa condição, esse isolamento que encontra inteireza fora de contexto e consequência, que faz de Kátia não mais do que um passageiro e borrado espetáculo.
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