Publicado originalmente na Cinética em Abril de 2012.
Desescrevendo a História
Desde os primeiros planos de A Música Segundo Tom Jobim – uma montagem de resplandecente material de arquivo dos tempos áureos do Rio de Janeiro – fica bastante claro que Nelson Pereira dos Santos não chega a Tom Jobim com a intenção de fazer um documentário musical-biográfico “comum”, em ser apenas mais um exemplar de um gênero que já merece prateleira própria dentro das quase sempre magras seções dedicadas ao cinema brasileiro nas locadoras. De fato, o diretor está a falar não só de um artista ou de sua biografia. Dele, propriamente, não se “fala” de fato coisa alguma. Por outro lado, Tom Jobim tampouco é aqui apenas a escavadeira que revira as pedras do passado, em um esforço arqueológico do país e do próprio cinema. Não há espaço para anedotas, discursos legitimadores de nossas autoridades em lugares comuns, devassamento de intimidade ou aquela velha inflamação do complexo de inferioridade que tenta humanizar o mito, insistindo em conquistar algo que já é ponto de partida e nunca deveria ter sido posto em crise.
A Música Segundo Tom Jobim é, de certa forma, um pouco de tudo isso, mas “pouco” aqui é palavra importante. Estamos diante de um filme de absoluta depuração, onde a História é colocada em tina d’água para decantar, até que permaneça somente o que lhe é essencial, as pequenas pedras que, solapadas pela erosão do tempo, cristalizam a matéria que lhes dá consistência. Após as imagens do Rio de Janeiro, o que fica é um grande trabalho de articulação e montagem de trechos de apresentações das músicas de Tom Jobim. São canções que viajaram o mundo, passando por alguns dos corpos mais importantes da música de sua época, decolando daquele primeiro Rio de Janeiro para, ao fim, retornar já com status de autor, de quem criava, fixava e propagava mundo afora aquela mesma mitologia. Mas há retorno?
Há algo particularmente expressivo na opção por um “filme de gabinete”, um documentário que evita as ruas e se dedica a extrair seu todo de um material já existente: a história, na verdade, já foi escrita. As imagens já foram registradas e, partindo disso, o verdadeiro trabalho historiográfico do diretor não é somente o de extrair um sentido determinado de um recorte dessa história, mas de perceber que, nesse almoxarifado sufocado de pontas de película e fitas magnéticas, o que era realmente essencial se perdeu. Ao cinema – arte que parte sempre de uma dupla condição: sua inevitabilidade histórica, e sua impossibilidade de ser a História – cabe a percepção dessa perda e a proposição de uma determinada restauração de um projeto de arte e, conseqüentemente, de país interrompido naqueles primeiros flashes, em preto e branco tão presente quanto as pedras portuguesas das calçadas da cidade.
Tom Jobim é este elo perdido, símbolo de um momento em que a arte brasileira era uma vontade de país ao mesmo tempo em que se colocava em pleno diálogo com o que de mais interessante era feito fora daqui – momento que inclui a própria geração de Nelson Pereira dos Santos. Mas algo descarrilou de lá pra cá, impedindo que aquela cidade, aquela primeira cidade, retorne viva, quiçá em cores, ao final do filme. Se algo na arte brasileira foi irremediavelmente perdido entre, digamos, 1960 e 2012, em algum desvio que nos voltou feito gado ao nosso próprio umbigo, não há metáfora mais potente para esse mau agouro do que o Rio de Janeiro. Por outro lado, não há figuras mais aptas a desatar este nó do que Tom Jobim e Nelson Pereira dos Santos. De corte em corte, a História vai perdendo pedaços, deixando para trás parte do que se tornou seu corpo, até se livrar de toda uma tralha que, pesando para um dos lados, nos fez tomar o caminho errado. A grande contribuição do cineasta é perceber o que havia ali de “em si”, escolher quais eram as pedras que não compunham a História, pois já a carregavam escrita no próprio corpo, e fazer as operações, as cirurgias necessárias para que não sobre nada além disso: a música segundo Tom Jobim.
A Música Segundo Tom Jobim é um filme sobre este gênio do craft, de como a techné é curvada e recurvada até expressar uma verdade do mundo no qual ela se insere. A necessidade de recorrer ao inglês e ao grego para se expressar algo tão básico à realização artística é ilustrativa das preocupações que foram sacrificadas ao longo dos anos, e de toda uma forma de pensar do Brasil-novo que não consegue enxergar a arte como mais do que um fenômeno, seja ele cultural, social, mercadológico ou industrial. Ainda assim, foi por meio da música – da exímia manipulação da escala musical, dos gêneros e das convenções ocidentais, senão universais – que Tom Jobim percebeu e reconstituiu aquelas primeiras imagens, aquele primeiro Brasil hoje perdido em um prólogo de um filme. Esse esmero artístico, tão cuidadosamente solapado e desestimulado por décadas de falácia em torno do “gênio intuitivo” tropical, encontra em Tom Jobim uma expressão cabal e em vias de desaparecimento. E justamente por isso, seguimos cada vez mais carentes de uma História: a digna do H maiúsculo será sempre a que for melhor contada.
A montagem do filme será guiada, portanto, não pela linguagem – deformada e reformada sempre que a música de Tom Jobim embarca para algum novo palco, viagem que é sempre sem volta e se espalha feito cura – mas pelos três pontos também essenciais: melodia, harmonia e ritmo. A melodia é a unidade maior, que determina a escolha das imagens e a maneira como elas serão articuladas, criando padrões, estampas, repetições e contrastes; a harmonia justamente como a articulação, o contraponto de sentido estabelecido entre uma imagem e outra, entre uma voz e um vibrafone, entre um palco e outro, entre um vermelho e um verde; e o ritmo como andamento, como instância percussiva dos cortes e das suturas, como amarração bruta da melodia e da harmonia. E se falamos de montagem, de melodia, harmonia e ritmo, é inevitável pensarmos em Eisenstein. “Eu não toco piano; eu só toco o rádio e a manivela do gramofone”, escreveu Eisenstein em suas “Memoirs”. A Música Segundo Tom Jobim não é somente uma colcha de retalhos, um greatest hits de um dos nossos maiores compositores, pois a todo tempo esses três fatores – melodia, harmonia e ritmo – estão norteando os cortes, produzindo sentidos que nos levam do Rio de Janeiro a Tóquio, com a mesma lisura que sai dos arranjos intricados de uma orquestra para o vibrafone solo de Gary Burton, reduzindo tudo às notas mais básicas da canção, sem com isso perder nada de sua complexidade. Diante de uma obra como a de Tom Jobim, não é necessário mais do que a própria obra. É dela que tudo nasce e é nela que tudo morre uma bela morte. E justamente despida, exposta em sua armação mais primordial, é que essa obra reencontra todo o significado que traz, inevitavelmente, incrustado em sua própria existência.