Publicado originalmente na Cinética em Março de 2012.
Sob o risco do real
É bastante compreensível que qualquer pessoa que veja o trailer de 2 Coelhos já entre no cinema com uma série de pressupostos que ajudam a empurrar o filme para debaixo do tapete. Compreensível e bastante justificado: há uma honestidade de intenções aqui, que ficam claras logo nos primeiros segundos – de filme ou de trailer – e que não serão desmentidas, contraditas ou ressignificadas. Estamos no reino da absoluta polifonia, do caos como metástase que se esparrama por todas as instâncias da vivência humana – política, afetiva, artística, moral – e que é traduzido por um irrestrito hibridismo de registros de encenação e da própria construção da imagem, indo do realismo plastificado de um Cidade de Deus (2002) à doçura grotesca do anime pós-relativismo, passando pelo CGI à Matrix (1999), a multiplicidade de pontos de vista e os pastéis de vento da narrativa farsesca. Filme onde tudo cabe, tudo é possível, mesmo que esse tudo aponte cada vez mais para o nada, para um niilismo generalizado tão mal deglutido quanto o macarrão que explode junto com a barriga de um mafioso em Morrer e Viver (1999), de Takashi Miike.
Por outro lado, 2 Coelhos não é tão ingênuo ou desmiolado quanto esse primeiro contato faz parecer. Há uma proposição em jogo, um olhar, uma forma de pensar o mundo e o cinema que, no meio de toda aquela cacofonia, surge absolutamente quebrada, mas que tem justamente nesse esfacelamento seu maior sintoma de inteireza. Pois, uma vez em um mundo onde tudo cabe, onde tudo é possível, as escolhas de Afonso Poyart se tornam um tanto mais eloquentes: se tudo é possível, por que o diretor escolheu exatamente o que escolheu para construir seu filme? Por que estas personagens? Por que lhes são reservados estes fins especificamente? Por que elas são encarnadas da maneira que são e não de outra – de qualquer outra, uma vez que o mundo encenado é aqui uma geleca infinita que pode ser esticada, comprimida ou transformada ao bel prazer do diretor, até ela começar a grudar todo tipo sujeira e ter que ser jogada fora?
E lá se vai a tranquilidade interdita do crítico: sai-se de 2 Coelhos com a certeza de que será necessário discutir o filme, algo que talvez não parecesse sequer vislumbrável nos primeiros minutos de projeção. Sim, há um filme – e, diante das imagens de Alessandra Negrini como ninfa adolescente, os baldes de desfoque e a fotografia de tintas deformadas para transformar tudo aquilo em algo que apenas se parece um longo comercial (pois 2 Coelhos não quer vender coisa alguma, e melhor assim), essa é uma primeira grande surpresa. Esse filme resultante, porém, não diz tanto respeito ao universo filmado quanto às suas próprias articulações. Melhor dizendo: há uma submissão do mundo às articulações do sujeito que transforma tudo o que há de real em delírio, em possibilidade de se rachar a cabeça em mil pedaços sem derramar uma gota de sangue ou perder um segundo de vida.
O problema, aqui, não é viver um delírio de grandeza, mas sim ter como referencial de grandeza o analfabetismo funcional de um Guy Ritchie. 2 Coelhos é uma versão mal ajambrada de um filme de mastermind, no qual o diretor, à semelhança do protagonista, arquiteta todo um plano infalível para se alimentar das estruturas já previamente estabelecidas (o gênero) e, ao fim, dar-lhes uma rasteira de recalque, dedo do meio em riste para uma sociedade que faz o possível para não permitir aflorar o grande sonho transatlântico: empurrar pela goela arcaica dessa velha oligarquia o triunfo impossível do self-made man. Todas as possíveis pontas soltas são enroscadas à narração em off, dando ao protagonista um privilégio de estrutura, de sentido, que o filme malandramente lhe surrupiará – afinal, está na essência de todo mastermind o desejo de que ninguém mais pense, porque o que importa é o esquema, e pensar necessariamente implica a possibilidade de entortar o jogo – em quebras de eixo que colocam todos, bandidos e bandidos, em uma mesma condição, como se a fisicalidade inegável da direita e da esquerda tivessem sido plasmadas em uma absoluta virtualidade, e o mundo não fosse mais do que um quebra-cabeças de 200.000 peças que não forma figura alguma.
Esse pequeno delírio de revanche é o sonho de Edgar, e também a maior aspiração do filme. Em ambos os casos, o tiro sai por uma culatra imprevista. Pois a culatra, ao contrário do filme, é real, e a realidade é sempre o mais complicado dos problemas. Talvez tudo seria mais fácil se fosse realmente possível fazer cinema de gênero no Brasil; se conseguíssemos acreditar que nossa vivência permite estilizações descompromissadas dessa realidade que nos perturba cotidianamente, e que um bandido de cinema nada tem a ver com os bandidos do mundo real. Que um barraco pode realmente ser transformado em um bunker e que é possível seguir um ladrão impunemente com uma oferta de trabalho tão tentadora que há de terminar em pizza. Mas no cinema brasileiro é difícil pensar em bons filmes de gênero que não ao menos flertem com a paródia, o pastiche inevitável de se contrastar o pré-estabelecido – as convenções – com a imprevisibilidade precária do nosso dia-a-dia. Da chanchada à Boca do Lixo, ou mais recentemente em filmes de curta-metragem como Jibóia (2011), de Rafael Lessa, O Hóspede de Anacã Agra e Ramon Porto Mota (2011), Mais Denso que o Sangue, de Ian Abé (2012), e Contagem (2010), de Gabriel e Maurilio Martins, toda a melhor produção com intenção de dialogar com o cinema de gênero no Brasil apresenta uma dificuldade enorme – consciente ou não – em ser mais do que um diálogo, como se o gênero demandasse uma crença por demais ingênua para nossa desconfiança de quem foi colônia de exploração. E se parte da liberdade atingida em 2 Coelhos vem justamente de não reconhecer esses limites, não é por isso que os limites deixam de existir.
“Em cinema, o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado: os filmes dos países desenvolvidos nunca passaram por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela”, escreveu Paulo Emílio Sales Gomes no clássico Cinema, Trajetória no Subdesenvolvimento. Enquanto transporta uma maleta de dólares em um carro blindado, um dos bandidos luxuosamente fuleiros de 2 Coelhos faz uma confissão de brutal sinceridade: “Eu acho que a gente nasceu no país errado”. É uma fala de honestidade desconcertante para um filme que gira todo em torno de um plano arquitetado durante uma temporada de férias forçadas – de fuga, em suma – em Miami, e que abre com uma música tirada de Titanomaquia, breve e maldita tentativa dos Titãs em gravar um disco grunge. A sinceridade é capaz de trazer dignidade mesmo às mais nocivas grosserias.
2 Coelhos, porém, não é um filme exatamente nocivo, embora sua inocente vontade de ser outro (talvez o maior combustível para fazer de Sergio Leone um gênio, por exemplo) em algum momento resvale no pior dos pecados: acreditar de verdade que realmente se é outro. Tentando se colocar distante do pastiche, da capacidade de rir de seu próprio desespero em transcender sua condição (novamente Sergio Leone), 2 Coelhos arremete uma vez que é obrigado a confrontar seu verdadeiro problema, que é não perceber que, assim como o imponderável do mundo frustra o plano de Edgar, há o tal estado de subdesenvolvimento que o tempo todo abrirá buracos no filme, como os que servem como mira para os fuzis na parede do barraco. Pois o cinema de gênero é, antes de qualquer coisa, um cinema de fé e de conhecimento profundo – e de uma prática incessante, algo bastante distante de nossa condição – da mecânica de sua escritura. 2 Coelhos é cínico demais para se dar conta disso, e debochado de menos para ser intencional e potencialmente a paródia acidental que ele, por inevitabilidade da natureza, acaba sendo.