Publicado originalmente na Cinética em Março de 2012.
De volta ao presente
Uma vez conversando com o crítico e amigo Francis Vogner dos Reis sobre o sofrível episódio de Wim Wenders no filme coletivo 8, ele me contou uma teoria de que o recente declínio da Europa estaria estampado na trajetória de três figuras: Wim Wenders, Bono Vox e o Papa João Paulo II. Seria possível desenhar um gráfico de ascensões e quedas concomitantes às três personagens e, a partir disso, traçar uma leitura ilustrativa da decadência da potência européia. O Papa está morto, mas a comparação de Wim Wenders com o vocalista do U2 e porta-voz do mundo – que, inclusive, já trabalharam juntos algumas vezes – permanece particularmente intrigante. Em ambos os casos, são artistas com uma fase inicial de inegável vigor que encontram reconhecimento generalizado em momentos de acomodação, e que seguem carreiras solapadas por quedas na auto-paródia e breves espasmos de auto-reinvenção. Na maior parte das vezes, esses esforços não deram certo, mas há de se apreciar qualquer traço de inquietação nos “monstros sagrados”.
Ainda na mesma comparação, Pina foi saudado mundo afora como a chegada do 3D ao “filme de arte”, dando novo status a uma reencarnação tecnológica/mercadológica que teve como um de seus primeiros representantes o filme U2 3D (2007). Mas, mais do que isso, tanto Bono Vox quanto Wim Wenders nutrem uma relação fecunda com a cultura dos Estados Unidos: a iconografia over the top de Paris, Texas (1984) e Achtung Baby (1991); a apropriação dos gêneros, como o filme de espionagem em O Amigo Americano (1977) e a canção gospel americana em “Still Haven’t Found What I’m Looking For”; as parcerias com representantes exemplares da cultura estadunidense em Filme de Nick (1980) ou Rattle and Hum (1988); e mesmo as odes diretas mais recentes, e muito menos bem sucedidas, de Estrela Solitária (2005) e “New York”. Talvez insuspeitamente, Pina é o filme mais francamente americano já feito por Wenders. Pois embora Paris,Texas sobreviva ainda hoje como um belo encontro de estrangeiros, esse mesmo estrangeirismo não conseguia transpor o fascínio real, mas sempre desigual, da erudição européia diante dos simulacros da América – jogo que Win Wenders faz em uma cena do filme, colocando Dean Stockwell contra uma paisagem pintada às suas costas, que poucos depois é retirada, revelando-se falsa.
Em Pina, a relação não parte mais desse desequilíbrio, dessa dicotomia entre verdadeiro e falso. A idéia, na verdade, é retomar – literalmente? Será o mesmo? – o bonde suspenso de Alice nas Cidades (1974), justamente o filme em que a idéia entre simulacro e verdade se misturam. Se no filme de 1974 a personagem de Rüdiger Vogler não consegue estabelecer uma relação com a América sem passar pela iconografia estática das polaróides, aqui, Wenders usará como mediação o que Hollywood tem de mais verdadeiro: a pulsante mise en scène dos musicais. Se fosse um filme de fim dos tempos, essa operação provavelmente não significaria mais do que a inversão dos mesmos papéis, no gesto servil do ex-senhor que, hegelianamente, agora se assume escravo. Mas como Pina é um filme pós-fim dos tempos, o resultado é ainda mais estranho: um musical europeu à americana melhor do que qualquer musical norte-americano feito nos últimos anos.
Há de se reconhecer que grande parte da força aqui vem das próprias coreografias de Pina Bausch. Mas Wenders não só encontra possibilidades de relação muito fecundas com um material que em si já é genial, como nos permite a maravilha de se imaginar um filme de Busby Berkeley em 3D, abrindo a coreografia para as profundezas mais recônditas da tela, com uma câmera que tenta dançar sem nunca se tornar protagonista, ao mesmo tempo em que evita que uma relação excessivamente respeitosa a impeça de criar algo junto aos bailarinos. Essa força vem muito pela mise en scène imposta à relação da câmera com a mise en scène do próprio balé, mas também pela montagem, de cortes nada reverentes à integridade do material original, mas que são quase sempre expressivos em suas escolhas e possibilidades de truque. Perde-se a possibilidade de se apreender a inteireza das coreografias, mas ganha-se o deslumbre dos bailarinos que mudam de idade entre um plano e outro, por exemplo, quase como uma inversão dos truques de Méliès.
Embora essa entrega ao cinema americano tenha algo de retorno, ela anuncia uma preocupação mais lúcida com o presente. Pois talvez Pina seja um filme tão inesperadamente forte e expressivo por enfim perceber, ou ao menos supor, que a decadência da Europa tem algo a ver com a falência do poder discursivo e semântico das palavras – percepção que, inclusive, marca profundamente a obra de resistência de sujeitos como Manoel de Oliveira, Eric Rohmer e Jean-Marie Straub. Não é à toa que o princípio do fim, ou o fim do princípio, da força artística de Wenders venha justamente com Asas do Desejo (1987), filme que começa com a Canção da Infância, de Peter Handke, recitada e escrita em uma folha de papel, e que segue todo ele circundado pela palavra-anjo. Se ali, em meados da década de 1980, esse era um movimento que fazia tanto sentido quanto os brados do refrão de “Pride (In the Name of Love)”, tanto Wenders quanto Bono Vox passam a maior parte das décadas seguintes ignorando o acerto que o gênio de Pina Bausch já começava a indicar no começo dos anos 1970, e que reaparece aqui quase como uma correção de rumos (ou um reconhecimento de derrota): de que o corpo, em sua expressividade muda, consegue dar conta de uma maneira de viver e de se relacionar com o mundo em um determinado momento com maior inteireza do que a articulação semântica da linguagem escrita ou mesmo falada.
Em Pina, Wim Wenders percebe com clareza a raiz desse problema, mas mesmo sua tentativa de solução aponta para a diferença inconciliável de quem não acompanhou a passagem de seu próprio tempo: os bailarinos aparecem como talking heads em silêncio, mas o diretor joga para a banda sonora falas em off que apontam a própria ineficiência da palavra, e que associam a Pina Bausch a descoberta do corpo como uma outra possibilidade de linguagem e expressão. Mas nas coreografias de Pina Bausch, é justamente o corpo quem, inclusive, expressará esta mesma deficiência do ser humano em significar plenamente, com as pernas pesadas que precisam ser carregadas pelas mãos dos dançarinos, o sucessivo jogo de cair e levantar, ou a força bruta da mão que puxa uma das dançarinas pelos próprios cabelos. Wenders reconhece a ineficiência da palavra ao lidar com o mundo hoje, mas sua desconexão é tamanha que a forma de deixar isso claro é justamente pela palavra, a fala, o depoimento que redunda com tudo que as peças e coreografias já apresentavam de forma absolutamente cristalina.
Em 2005, Luiz Carlos Oliveira Jr. escrevia, com razão, na Contracampo, que Wenders vinha fazendo um cinema ressentido da ausência de herdeiros. Seis anos depois, não se pode dizer ainda que o diretor tenha feito as pazes com essa realidade, mas ao menos é perceptível que ele se dá conta de que os paradigmas são outros e que não há cisma ou auto-envolvimento que possa atravessar o rufar dos tempos. As coreografias filmadas de Pina fazem pensar no naturalismo ultra-estilizado dos travellings de Jia Zhang-ke, na pulsante profundidade da festa de Shara (2003), de Naomi Kawase, e até mesmo em As Hiper Mulheres (2011), de Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro, outro filme recentíssimo a extrair grande força da mise en scène dos musicais inserindo-a em um lugar estrangeiro. E a simples comparação de um novo filme de Wim Wenders com obras que vivem e pulsam a inevitabilidade do presente faz de Pina seu melhor filme em duas ou três décadas.