Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2010.
Love me tender
Sweet Karolynne é um filme que praticamente implora para ser subestimado, ou abraçado por motivos tortos. Temos ali um registro documental bastante liso, extremamente calcado no carisma da criança personagem-título (com todos os gracejos naturais que fazem a regra dos filmes com personagens dessa faixa de idade, e que aqui é assumido como pertencentes ao filme nos desenhos que ilustram os créditos finais), com um raciocínio de montagem que, de tão discreto, pode passar despercebido, e uma fotografia em hi-8 que, dentro da sujeira e da falta de definição hoje já tão datada do formato, não parece querer muito além da mera captação das cenas – menos da maneira “justa”, e mais da maneira “possível”.
É possível dizer, em uma segunda análise, que todos esses elementos emprestam até um certo charme ao filme – algo que, mesmo não sendo falso, é ainda assim secundário. Pois o que impressiona no trabalho de Ana Bárbara Ramos é como esses elementos se revelam puramente distrativos para uma firmeza de contato e de articulações que são o fator determinante por trás da força de Sweet Karolynne. De uma abordagem bastante protocolar, que combina conversa com observação, o encontro entre realizadora e personagem produz um material que, para além da força individual de certos momentos (o plano de Karolynne cantando “Love Me Tender” em inglês inventado é digno de antologia), se completa realmente na montagem. É ela que conquista, em Sweet Karolynne, uma rara qualidade paradoxal: usar o específico para falar do que é geral, sem com isso deixar de ser específico.
Sweet Karolynne é um filme sobre Karolynne, menina que mora nos fundos do bar dos pais na Paraíba, e que tem o hábito e a paixão de criar galinhas e galos como se fossem seus melhores amigos. É também um filme sobre a tomada de consciência da morte, sobre o fio predatório que enlaça o amor, sobre a vivência da finitude e da infinitude como sentimentos contraditórios, mas inegavelmente presentes na relação do homem com o mundo. Mas, mais importante, é sobre tudo isso sem nunca gritar sobre isso; são questões que transbordam da vida de Karolynne, e que o filme muito discretamente dá a ver sem ceder à consciência excessiva de que “se fala sobre isso”. Não há, em Sweet Karolynne, um único plano sem força, que pareça estar ali somente para ilustrar uma questão que lhe é empurrada de fora para dentro.
O paradoxo é essencial, pois é muito como a vida e como a infância, e a sua produção é uma questão de critérios realizadores: Ana Bárbara percebe a ponte inventada entre Elvis Presley e o galo Jarbas; corta do aniversário do galo para um plano da família comendo frango no almoço; nunca pede que Karolynne fale sobre qualquer coisa que não lhe diga respeito; e termina (mesmo que não objetivamente) o filme com aquele formidável plano de Karolynne dançando, pulsando vida e uma graciosidade sem jeito tão misteriosa quanto sintética de sua presença em tela. E tudo isso demonstra um gesto realizador de eloqüente discrição (pois “elegância” e “delicadeza” parecem ser palavras que o filme jamais buscaria para se descrever), que se equilibra no ponto exato onde o desejo de realmente significar por meio de Karolynne nunca fere a sensação de integridade da personagem, nem atropela a organicidade do material com a vontade desmedida de que ele signifique mais do que lhe cabe.
Em todo seu aparente desleixo cosmético e sua evidente brutalidade, Sweet Karolynne é um filme de medidas precisas e exatas. Não há mapa, regras ou conceitos que possam garantir isso; é algo que ressoa – como Karolynne percebe todo o sentimento de “Love Me Tender” sem entender suas palavras – e que parece só ser alcançável instintivamente por quem se dispõe a ouvir, com determinação em afetar e se deixar ser afetado.