Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2010.
O campo-lar
Rosa e Benjamin não é exatamente um filme-conceito, um filme teórico, um filme narrativo, ou sequer um filme descritivo. A ação na qual ele parece investir com maior propriedade é a de demonstração. Não temos sugestões ou indicações, apenas ações que são mostradas em cena de uma maneira particular. Um casal de idade avançada conversa sobre um novo vizinho; um avião parte do aeroporto; uma mulher crava os dedos num vaso de terra. São elementos que o filme – antes de qualquer coisa – mostra ao espectador. Se Rosa e Benjamin é uma obra demonstrativa, é um filme do (e não sobre o) campo cinematográfico – a clareira onde os elementos são colocados em cena, recortados do mundo pelo enquadramento. Vemos o que nos é dado a ver.
Cléber Eduardo e Ilana Feldman parecem retomar Desencanto (1945), de David Lean, mas com uma mudança de ponto-de-vista: se lá acompanhávamos a excitação do flerte extra-conjugal da mulher, aqui ficamos ao lado do marido, aquele que junta as peças e surpreende sua esposa por, em silêncio, ter total compreensão de tudo por o que ela passa. Aqui, sabemos estar do lado do marido por um simples truque de fotografia: em um plano em que vemos os dois protagonistas em ambientes distintos, a película está respondendo à temperatura de cor do cômodo onde está Benjamin, deixando Rosa no ambiente que tem as cores deformadas. No filme de David Lean, o marido aparecia sempre preenchendo uma revista de palavras cruzadas, contrapondo informações que constroem, ao final, um julgamento da situação (seja ela a formação da palavra, ou a percepção de um adultério). Rosa e Benjamin demanda, do espectador, uma postura parecida, oferecendo elementos concretos que, mais do que indícios, são os índices do filme. Rosa fala de Alfredo, vizinho que nunca chegamos a ver, mas que ela chama com a intimidade que suaviza os pronomes de tratamento. Alfredo existe; Rosa o conhece, e fala sobre ele com o marido; eles moram perto de um aeroporto; eles parecem viver juntos há anos; temos a casa e a cidade. Lar. Cruzamos todas essas informações e saltamos os limites do campo para construir uma impressão: há o dentro e o fora; o trabalho e o cuidado doméstico; o homem e a mulher; o humano e o arquetípico; o velho e a novidade. Pela demonstração, os diretores nos convidam a transgredir os limites do campo.
Essas extrapolações, porém, são nossas, não do filme; o filme apenas mostra. Estaria em curso uma traição? Não temos motivos para dizer que sim, ou que não. Pois para se aproximar de Rosa e Benjamin é preciso se ater ao que é demonstrável: Rosa fala de Alfredo, e o chama pelo primeiro nome. Isso é tudo. Mas o campo cinematográfico é uma clareira, e a clareira é o espaço filosófico onde os entes se apresentam em toda a sua ambigüidade. No filme, esse campo é povoado por signos que suscitam leituras contraditórias: o avião que pode simbolizar tanto a partida quanto a chegada (em dado momento, Benjamin profetiza sobre o dia em que um avião por fim cairá sobre seu telhado); Rosa, mulher-flor enraizada em um pequeno vaso de terra, mas que demanda cuidados e atenção particulares para se manter viva e resplandecente; o “fora” que se apresenta como respiro, como fuga da prisão do “dentro”; ou então o “fora” que reafirma o “dentro”, onde reconhecer a possibilidade de partida é afirmar o desejo de ficar para além da inércia, do hábito, da facilidade.
Demonstrar é afirmar o não-absoluto do concreto, chamando a atenção para a moleza daquilo que costumamos ver apenas como “duro” e da multiplicidade do que nos parece uno. A arte funciona como uma clareira desestabilizadora dos objetos: nada é definido Remontar essa amibiguidade dos entes já é, por si só, uma ação bastante desestabilizadora. Perdemos, com isso, o olhar acostumado, tão entorpecido pelos hábitos do mundo que não mais percebe sua distribuição interna para além da utilidade. Mas, mais do que isso, a ambiguidade (em especial quando assimilada com tanta discrição, como é o caso de Rosa e Benjamin) devolve a consciência de que estamos, o tempo todo, a fazer escolhas. Por ela, retomamos a sensação do peso e da leveza ao determinarmos o que chamaremos de “dentro” e de “fora”; em que momento seremos niilistas, ou seremos conservadores; quando um avião vira símbolo de partida, e quando é símbolo de chegada.
A operação realizada pelo filme é a de trazer estes signos específicos para esse espaço de reconfiguração, na política que, antes de determinar se vamos à direita ou à esquerda, nos mostra que chegamos a um entroncamento. O campo se faz não pela recusa, mas justamente pela afirmação de o que ele traz de fora para dentro. Ele funciona, no filme, como a idéia de lar – no que cabe lembrar a frase feita, mas extremamente cabível: home is where the heart is. Como em Yasujiro Ozu, o cinema é reassumido como espaço do “dar a ver”; a reflexão existe para além do filme, a partir dele. No prefácio da coletânea de críticas A Magia do Cinema, Roger Ebert diz que “cedo ou tarde, todo amante de filmes irá ter com Ozu, quando então perceberá que os filmes não são sobre os processos de mudança, mas sim, sobre se se quer ou não mudar”. A postura de cada espectador é intransferível e de sua própria responsabilidade, e – ao mesmo tempo em que pouco diz sobre o filme, em si – é o que ele tem de mais valioso.