Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2011.
A rigidez do descontrole
Vinte cigarros, vinte planos, vinte retratos. Esse tripé já dá dimensão das diferenças entre Twenty Cigarettes e Ruhr (2009), filme anterior e mais representativo do estilo de James Benning: enquanto em Ruhr os planos de paisagem – humanas ou não – eram esburacados, criando avenidas para que o imaginário de cada espectador pudesse circular dentro do filme, aqui, tudo é marcado por uma inescapável concretude. Vinte pessoas fumam diante da câmera. Temos, com essa simples e inegociável premissa, um novo filme de James Benning.
É impossível passar por Twenty Cigarettes sem mencionar os filmes-retratos de Andy Warhol. Mais do que uma inspiração ou referência, as poses de Warhol são abertamente homenageadas por Benning. O sentido é parecido e se torna ainda mais forte pela repetição: cada pessoa fuma de uma maneira diferente, e não há muito a se fazer nessas vistas além de se deixar enroscar nos espirais de fumaça, flutuando nas modulações internas de cada plano, único em sua igualdade. Pois Twenty Cigarettes é um filme duplamente modular. Temos os módulos rígidos e individuais, que se encaixam na repetição de uma linha de montagem; mas, ao mesmo tempo, cada um deles é estremecido por modulações particulares, com os olhares que se perdem e reencontram a câmera e a fumaça que é tragada e expirada de forma sempre diferente, e de alguma maneira surpreendente. Estamos em terreno semelhante ao desbravado por Kiarostami em Five Dedicated to Ozu (2003): diante do mínimo, cada pequena variação ganha uma monumentalidade inesperada – algo em muito potencializado pelas grandes dimensões da tela do cinema.
Mas Twenty Cigarettes é, também e em grande medida, um exercício de descontrole, o que o aproxima em dispositivo e fruição de Moscou (2009), de Eduardo Coutinho. A ausência de qualquer reenquadramento já indica o que Benning confirmaria em entrevistas: o diretor escolhia o local para cada personagem (algum deles ilustres, mas que são tratados pelo filme com a igualdade dos desconhecidos), enquadrava, ligava a câmera e saía do ambiente, deixando que as personagens ficassem a sós com a câmera. A organicidade de reação de cada uma delas – travando ou não contato visual; escolhendo a maneira de se relacionar com o quadro e com o que está fora dele; quiçá virando de costas para a câmera – é confrontada à rigidez desse descontrole. Estamos próximos dos enquadramentos “autônomos” de Wavelength (1967) de Michael Snow, em que a pré-disposição da câmera ocultará sistematicamente do espectador aquilo que ele normalmente gostaria de ver. E se Benning mantém algum controle de montagem, mesmo ele é rarefeito: todo plano dura exatamente a medida de cada cigarro, e sua duração é determinada pelo próprio fumante, tomando o tempo que lhe parece necessário. É como se a relação entre câmera e personagem se equilibrasse na tenuidade da fumaça, em um pacto que se esgota com a última tragada. E mesmo a escolha do número de planos não é arbitrária: Twenty Cigarettes tem tantos planos quanto um maço tem cigarros.
É aí que Twenty Cigarettes revela a especificidade de seu artefato e se torna diferente de qualquer outro filme modular, que registraria protocolarmente a repetição de uma atividade qualquer. Em primeiro lugar, por o cigarro ser de fato um pequeno ínterim de intimidade em uma rotina cada vez mais mecânica, menos particular, que será retomada antes e depois do plano. Há uma pulsão extremamente erótica nesse contato, que conserva sensualidade sem nunca esbarrar na pornografia, expondo uma intimidade que nunca foi de fato resguardada. O cigarro é o momento de solidão no coletivo – não à toa, binômio que configura toda a experiência de museu, como é o caso do próprio cinema. Em segundo, por ele representar os conflitos de dentro/fora que estão em jogo no filme: a fumaça que é aspirada e posteriormente expirada nos dá uma dimensão física dos movimentos centrípetos e centrífugos de todo plano, em uma dinâmica concomitante de atração e repulsa que desestabiliza qualquer relação possível com aqueles planos, aquelas pessoas, aqueles olhares. Somos tragados e cuspidos ao ar por cada plano, feito fumaça envelhecida. E em terceiro por o cigarro ser, desde que o cinema é cinema, um dos objetos de cena mais comuns e expressivos para uma arte que precisa mostrar a interioridade sem ter acesso direto a ela, seja trazendo para a superfície as emoções mais secretas das personagens, ou desdobrando um espaço tridimensional em uma superfície que é fatalmente plana.
Todos esses pensamentos são disparados pelo correr do filme sobre a tela, em um sem número de relações artísticas e históricas que são acendidas e incendiadas com cada novo cigarro. E se elas são suficientes para dar alguma medida do poder do filme de Benning, são também sintomas de o que torna Twenty Cigarettes menos acachapante do que Ruhr ou RR (2007): enquanto os filmes anteriores de James Benning esculpiam na paisagem um mundo que parecia novo, fascinante e autônomo, Twenty Cigarettes é um filme da história do cinema, no qual todo maravilhamento possível está justamente na evocação e revisão do que já foi visto, experimentado e sentido anteriormente por outros artistas, em outras sessões de cinema. É um filme de homenagem ao próprio cinema, mas aqui percebemos que Ruhr era uma homenagem ainda maior ao cinema justamente por, em todo seu espaço para abstração, ser o que é: um grande filme em si, que, por isso mesmo, não precisa falar sobre si, existindo com a plenitude com a qual uma montanha é uma montanha.