Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2011.
Controlar a água
Em dado momento de Adeus, Primeiro Amor, quando o trauma do primeiro rompimento começa a ser esgarçado pela passagem do tempo e uma primeira nesga de luz parece apontar no fim do túnel para Camille (Lola Créton), seu então professor Lorenz (Magne-Håvard Brekke) faz um desenho na parede e define o mundo: “A água é controlada, mas ela é livre”. Há, nesta cena, mais do que um simples conselho arquitetônico; ela é, de fato, uma declaração de princípios da própria diretora, Mia Hansen-Løve, que será repetida na canção “The Water”, de Johnny Flynn e Laura Marling, que fecha o filme: the water sustains me without even trying. Todo o exímio controle de Mia Hansen-Løve em seu terceiro filme vem justamente para criar a sensação de que ele é dirigido para parecer que dirige a si próprio, e o mesmo acontece com nossa fruição. O filme é controlado, mas ele é livre, inevitavelmente livre.
Essa postura parece dimensionar com alguma precisão a enorme distância entre as margens onde se colocam, de um lado, as diversas tentativas recentes de se aproximar do universo jovem no cinema brasileiro e, do outro, a absoluta maestria com que Mia Hansen-Løve aborda a mesma fase da vida neste seu terceiro filme – a rigor, o segundo sobre a juventude, que também agraciava o excelente Tudo Perdoado (2007). Pois, mais do que um simples recorte geracional, a juventude em Adeus, Primeiro Amor é uma atitude realizadora que contamina o filme. Mia Hansen-Løve pega a deliciosa flutuação no presente da fase de coração leve de Eric Rohmer (O Amigo da Minha Amiga; Pauline na Praia; Conto de Verão) mas a confronta à maior habilidade que a diretora vem demonstrando desde seu primeiro longa: filmar a iminência de um desaparecimento. Pois as elipses violentas de Adeus, Primeiro Amor, muito ao modo de Pialat, reforçam que tudo – do primeiro namorado ao próprio frescor da juventude – parece estar sempre por um fio, correndo o risco de ser dizimado pela chegada do segundo seguinte.
É interessante, porém, que toda essa sensação de vida a correr – de um filme que jorra como um rio, em imagem que será retomada em momentos decisivos – vem de um controle absolutamente justo, que coíbe ao anacronismo o velho binômio de “opacidade” e “transparência”. Nesse sentido, Adeus, Primeiro Amor é oposto ao Entre os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet: enquanto, no filme de Cantet, a forte impressão de realismo acabava engasgando no gatilho, chamando tanta atenção para o quão precisa era sua construção que, ao fim, olha-se apenas para a construção e não para o que ela constrói, no filme de Mia Hansen-Løve a absoluta evidência do toque da diretora (a orquestração dos vermelhos; a maneira como toda fala é escrita para não criar qualquer continuidade narrativa; a forma como as elipses eliminam qualquer casualidade da montagem, ordenando as sequências como um raccord de sentimentos, mantendo-se irredutivelmente fiel ao que é importante para a protagonista e, logo, para o filme; a forma como as estações do ano compõem com os humores da personagem) conduz o olhar inevitavelmente para dentro do quadro e para o acompanhamento vidrado de cada passo de Camille.
Esse apego absolutamente material às presenças, e à misteriosa projeção de sua própria fantasmagoria é, antes de mais nada, ferramenta de imersão no universo filmado. Pois é justamente a iminência do fim que faz com que Mia Hansen-Løve encare as dores adolescentes com o peso e a seriedade que elas demandam. Ou seria o contrário? De qualquer forma, temos aqui uma empatia ao sofrimento da saudade e da espera que só encontra paralelos no cinema recente em Brilho de Uma Paixão (2009), de Jane Campion. O interesse pelos jovens não visa a catalogação de seus símbolos de juventude, o acompanhamento de suas rotinas comportamentais, ou a fetichização de sua nada fetichizada sensualidade (e sensualidade é o que não falta em Adeus, Primeiro Amor). O interesse é justamente o de filmar cada minuto de existência como um filme de suspense – uma vez que a vida adulta está sempre à espreita, ameaçando destruir tudo que se conhece em um segundo determinado e impossível de se prever – e de captar toda a monumental decepção de uma caixa de correio vazia.