Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2011.
Cinema de gêneros
Não deixa de ser curioso que, desde A Flor do Meu Segredo (1995), Pedro Almodóvar tenha se estabelecido como sinônimo de elegância e requinte no cinema mundial, com filmes frequentemente louvados pela beleza plástica conferida às cenas de sexo, uma carnalidade que irrompe no decoro dos manuais de charme e etiqueta, e os vermelhos fechados que já foram parar até em canções de Adriana Calcanhoto. Almodóvar talvez seja um dos exemplos ideais do que se convencionou chamar de “cinema de bistrô” – aquele que empacota junto aos filmes todo um ideal de vida “sofisticado”, com as luzes quentes e sempre indiretas que trazem para o cinema a “ambiance” segura e reificante das agências de banco personalizadas. A diferença de Almodóvar (ou do Wong Kar-wai pós Amor à Flor da Pele) para o resto do balcão de confeitaria (vitrine, em si, nada indigna) é que seus filmes desse período são invariavelmente muito, muito bons, marcados por uma sensibilidade rara que paira sobre qualquer emprego da arte como termômetro sociológico. Até que se chega a Abraços Partidos (2009), filme pesado não só por um sensível desconforto do cineasta com o saco de gatos no qual ele parecia ter se enfiado, mas que também indicava – em seus travellings mal ajambrados e uma preguiça quase onipresente (pois é ainda um filme de belos momentos) na encenação – uma falência, para não dizer um falecimento, do “padrão de qualidade” de Carne Trêmula (1997), Fale com Ela (2002) ou Volver (2006).
É inevitável, portanto, que este A Pele que Habito traga consigo uma onda de bem vindo desconforto. Pois o retorno de Antonio Banderas (com quem o diretor não trabalhava desde Ata-me) parece ser apenas a nota mais evidente de um desejo perceptível de se voltar novamente ao período mais selvagem de sua carreira, no desequilíbrio fascinante que marcava filmes como Kika (1993), Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), O Que Eu Fiz para Merecer Isto? (1984) e o próprio Ata-me (1990). Mas se A Pele que Habito busca recuperar o frescor jovem daqueles caminhos tortos, agora ele é retomado por uma consciência estrutural e uma sabedoria que os anos de burilamento e aperfeiçoamento de sua fase madura lhe conquistaram. A Pele que Habito talvez não seja o melhor filme de Almodóvar, mas é, sem dúvidas, o que melhor sintetiza suas loucas e fascinantes aspirações como artista nesses quase 40 anos de carreira. (e aqui talvez seja necessário alertar o leitor de que, para lidar minimamente com o filme, spoilers serão necessários, e recomendar que ele assista o filme antes de prosseguir a leitura – embora, convenhamos, que crítica já não é, em si, um grande spoiler?)
Pois se o filme registra uma até então inédita aventura do diretor pelo cinema de horror, é difícil amarrá-lo simplesmente como um filme de gênero – que sempre nasce de um respeito profundo às convenções, respeito esse que, como outros, não diz coisa alguma a Almodóvar. O horror, ao contrário, é pervertido pelo reflexo na estrutura do filme do drama de seu protagonista: assim como Vicente (Jan Cornet) é condenado a se tornar Vera (Elena Ayana), o filme também passa por mudanças de gênero, indo do horror ao drama. Mas, mais do que isso, o que Almodóvar parece buscar neste filme é destacar uma sensibilidade (a sua) que flutua além dos gêneros. Uma mudança de sexo é incapaz de construir uma personalidade unívoca, e por isso o trabalho trans-gêneros (e o duplo sentido do termo é a consciência que norteia todo o filme, tomado tanto pela acepção masculino-feminino, quanto pelo gênero cinematográfico) não exclui a comédia do horror, o melodrama da comédia, o romance da pornografia, a inação da ação.
Isso não significa, porém, que A Pele que Habito se coloque como um filme pós-gênero, para aproveitar o sufixo do equívoco “pós-racial” que tanto se alardeou com a eleição de Obama (e para o qual O Casamento de Rachel, de Johnathan Demme, segue como uma eloquente resposta). Ao contrário, Almodóvar não só parte do princípio de que ser homem ou ser mulher é um (entre tantos outros) dado constitutivo da identidade de suas personagens, como vai justamente provocar choques entre essas duas sensibilidades – uma vez que A Pele que Habito é, sem dúvidas, um filme gay. O cinema, de Murnau a Apichatpong Weerasethakul, talvez tenha sido a arte que melhor capturou essa apreensão de mundo que ganha força justamente na combinação dos opostos, de um olhar que consegue ser, igualmente e ao mesmo tempo, masculino e feminino. A Pele que Habito tem sua maior referência em Louise Bourgeois, artista tão preocupada em afirmar o gênero (“Quando queria representar algo que eu amava, eu obviamente representava um pequeno pênis”) quanto em colocá-los em conflito em um mesmo espaço artístico, onde formas fálicas saem de esculturas inspiradas por formas femininas, e vice-versa. É dela também uma das frases lapidares para o entendimento do comportamento de Vicente/Vera, mas também do próprio Almodóvar no filme: “Eu não sou o que sou, eu sou o que faço com as minhas mãos”.
É munido dessa potência que Almodóvar usa Franju (Os Olhos sem Rosto) e Claire Denis (Trouble Every Day) para subverter, de uma só tacada, as intenções megalomaníacas dos contos de reconstrução do humano (de Metrópolis a Frankenstein, seguido por todas as suas subsequentes diluições) e o luxo haute-couture das jóias e figurinos de De Mille (o que é, também, uma facada de modernidade nas convenções do clássico), trazendo Jean-Paul Gaultier para desenhar uma malha bege que grita simplicidade em toda a tipificada sofisticação do filme (um filme de brechó), ressignificando a erotização da presença de Elena Ayana com as entorses de roteiro na segunda metade do filme. Não à toa, os créditos finais trazem uma de suas mais belas e sintéticas imagens: uma cadeia de DNA que, indistinta, resplandece feito um bracelete de pedras preciosas.
A Pele que Habito se agiganta justamente nesse controle exímio de significantes/significados, sem com isso deixar de ser uma tragédia com a qual nos compadecemos – mesmo que, muito ao modo de Almodóvar, nossos afetos sejam depositados em um possível estuprador ou um louco convicto. É nesse sentido que A Pele que Habito se coloca surpreendentemente próximo de A Marquesa D’O… (1976), filme de Eric Rohmer em que uma elipse nos fazia cúmplices de um estupro, e essa cumplicidade se tornava mais incômoda a cada nova risada diante das situações cômicas encenadas. Em um filme tão visivelmente preocupado com os papéis e as operações desempenhadas pela aparência – onde as roupas vestem como uma segunda pele e a segunda pele veste como uma roupa, mesmo que seu processo seja tão mais doloroso – Almodóvar se insurge violentamente contra o status que lhe foi justamente garantido por anos de bons filmes. A Pele que Habito é um filme político.
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