Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2011.
Filme de horror
À primeira vista, a menção a Friedrich Nietzsche no texto que prologa O Cavalo de Turim pode parecer uma mera (e bem vinda) gota de ironia e acaso à estranha rotina de confinamento que tomará todo o resto do filme. Nietzsche não voltará, e a citação parece ser usada apenas como impulso para por em movimento uma trama que poderia, muito bem, dispensá-la. Mas o aceno a Nietzsche ganha um significado para além do anedótico quando vemos, pela terceira ou quarta vez, Ohlsdorfer (János Derzsi) e sua filha (Erika Bók) esmagando, com as mãos, batatas cozidas que soltam fumaça, no centro de um prato. Está lá, em A Gaia Ciência: “E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência (…)’ Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim?”. Em O Cavalo de Turim, Béla Tarr dá imagens ao Eterno Retorno – e até mesmo palavras, em um breve e decisivo encontro com um terceiro personagem, que traz à mesa termos tão fora de moda e essenciais quanto Bem e Mal.
Mas o que parece interessar aqui é menos o paradoxo da repetição, como em O Feitiço do Tempo (1993), de Harold Ramis, ou Turning Gate (2002), de Hong Sang-soo, e mais a atmosfera que pode ser construída a partir dela. Ou seja, importa menos a repetição de fato, e mais a sensação de dias e rituais que são condenados à sua própria rotina. Esse pequeno desvio é o que diferencia uma comédia de um filme de horror. Pois O Cavalo de Turim trabalha diretamente – mesmo que isso só se torne claro na segunda metade do filme – com convenções, estrutura e organização dramática que saem diretamente do cinema de horror.
Por conta de um evento externo arbitrário, um grupo de personagens fica trancado dentro de uma casa. Essa irredutível sinopse poderia ser compartilhada, sem necessidade de grandes adaptações, com uma série de outros filmes: O Anjo Exterminador (1962), de Luís Buñuel; Os Pássaros (1963), de Alfred Hitchcock; A Noite dos Mortos-Vivos (1968), de George Romero; O Buraco (1998), de Tsai Ming-liang; boa parte de Eureka (2000), de Shinji Aoyama; Sinais (2002) ou Fim dos Tempos (2008), de M. Night Shyamalan, etc. Mas enquanto Hitchcock, Romero, Shyamalan e Tsai Ming-liang usam o confinamento como possibilidade de se trabalhar intensa e expressivamente o fora de quadro, e a mútua relação entre o dentro e fora, no filme de Béla Tarr, o fora (representado em grande medida por um barulho de vento constante e que beira a monotonia, no artificialismo típico dos desenhos sonoros de Tarr, com as vozes dubladas e a trilha musical em ostinato, outro recurso de repetição) serve apenas como moldura para o esmero do que está, de fato, na casa-cena.
Não à toa, um dos planos mais fortes de O Cavalo de Turim fará uma inversão do brilhante plano de abertura de Damnation (foto), em que um recuo de câmera reconfigura o estatuto diegético da imagem – em primeiro momento, um teleférico que toma toda a tela, mas que depois virá a incluir a moldura da janela, e em seguida o personagem que vê a imagem do teleférico pela janela. Dessa vez, a câmera é mantida dentro de casa, fechando aos poucos na chegada de um grupo de ciganos, do lado de fora da casa. Mas não é possível “des-ver” as armações da janela quando elas são retiradas de quadro; uma vez que foi estabelecido o lugar de onde se olha, não há truque capaz de reconfigurá-lo. Essa inversão do movimento deixa às claras uma diferença de prioridades: aqui, é o fora que será condicionado e recondicionado pelo dentro. O vento sopra em torno da casa, mas as roupas secam em um varal estendido no meio da sala. Onde é aquela casa? Qual é o momento histórico daquelas personagens? Todas essas perguntas ficarão sem resposta, mas em momento algum a integridade de existência daquela casa-cena é colocada sob julgamento. Há algo de extremamente palpável em sua dura existência, e essa palpabilidade é seu triunfo e sua condenação. Em pouco tempo, saberemos da verdade incontornável que as personagens do filme levarão muito mais tempo para aprender: não há possibilidade de fuga.
O Cavalo de Turim é, portanto, um filme que privilegia o mostrar ao sugerir. Mas o que o torna uma obra tão intrigante é que esse mostrar ganha uma força tremenda – embora exista, de fato, muito pouco a ser mostrado. As ações se repetem como os copos d’água que Ohlsdorfer bebe de um só gole, ocupando a casa como os vários pares de meias e botas que as personagens vestem e desvestem, camada por camada, ao longo do filme. E esses detalhes, esses pequenos gestos que criam toda uma liturgia doméstica, ocupam a casa como ocupam o filme, e dão-lhe vida – com a capacidade sinestésica dos planos de invocar cheiros, texturas, “cores” – mesmo que seja no confronto inevitável com a morte. Béla Tarr faz um filme de horror bastante atípico (o equivalente mais próximo talvez seja Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), embora o filme de Chantal Akerman seja mais “generoso” com as expectativas dramatúrgicas do espectador, brindando-lhe com um grand finale que passa longe de O Cavalo de Turim), pois mais do que uma suspensão, o que ele faz é estabelecer um ritmo, uma coreografia de corpos e vazios, de pretos e brancos, de ação e repouso que esticam o filme como um velho elástico. Até onde será possível esticá-lo antes que ele arrebente?
Nas quase duas horas e meia de projeção, os dias se empilham como as meias, a possibilidade de fuga fica cada vez mais distante, os truques da sorte (ou do azar) cada vez mais inexplicáveis, os rostos são lentamente escavados pela espera, e a cada segundo aumenta a certeza de que o motivo que alimenta a espera se torna mais distante e incompreensível. Mas essa meticulosa construção de atmosfera é o que faz com que uma breve conversa à mesa se torne um diálogo filosófico, que um poço seco abra uma janela para a finitude, que a demora de um contraplano que revele o que se passa fora de quadro transforme um olhar em direção à câmera em um pedido de misericórdia, e um simples rosto prostrado à janela se torne uma explosão de fantasmagoria de gelar os ossos. Béla Tarr segue esticando seu cinema, desfiando atmosfera e uma clara sensação de presença em planos cada vez mais impactantes e sufocantes. E, com a força decorrente de seus próprios limites, O Cavalo de Turim se fecha como um filme de horror metalinguístico, onde o suspense e a tensão vêm do temor pela integridade do próprio filme que, contrariando seu próprio jogo de expectativas, corre denso e inquebrantável até o final da projeção.