Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2011.
Jogo de espelhos
Não é surpreendente que, após o mergulho irônico mais profundo de O Escritor Fantasma, Roman Polanski chegue à sátira de fato (e de volta) neste Carnage. A idéia central da realização é simples: trancar quatro atores em uma casa, colocar-lhes um problema externo de onde partir, e fazer, com isso, uma leitura sismográfica das interpretações daqueles quatro corpos, em uma verdade de existência que envolve classe social, família, poder, espaço, localização, etiqueta e vários outros pequenos vetores que norteiam as relações sociais.
Na frieza da História, é possível estabelecer paralelos bastante cabíveis entre Carnage e filmes mais ou menos recentes que partem de estrutura e fontes parecidas (peças de teatro, em vários casos), criando uma tensão constante entre a decupagem cinematográfica e um tempo de interpretação e de construção em tableux mais propriamente teatral: Terça, Depois do Natal (2010), de Radu Muntean, como um bom representante; Closer (2004), de Mike Nichols no oposto mais anêmico; e naturalmente Alain Resnais, com Mélo (1986), Smoking/No Smoking (1993) e o mais recente Medos Privados em Lugares Públicos (2006). Essa tensão também se apresenta em Carnage, e Roman Polanski a harmoniza com notável destreza, deixando o tempo correr para que os atores habitem a cena, ao mesmo tempo em que se aproveita de recursos caros ao cinema (a precisão da montagem; a mise en scéne e o foco em profundidade; o uso dos reflexos que não só reconfiguram aquelas relações como um jogo de espelhos, mas também redistribuem a carga do contraplano para o plano; o “corte” dentro do plano precipitado pelo incansável telefone celular de Christoph Waltz) para destacar e ressignificar o que está, de forma bruta, em cena.
Mas há um dado só até certo ponto extra-diegético em Carnage que complexifica a relação entre o dentro e o fora dessas paredes-palco: como O Escritor Fantasma (2010), Carnage é um filme passado nos EUA, país que o diretor tenta retratar sem poder de fato habitar, andar por aquelas ruas, pisar naquele chão. Se O Escritor Fantasma tinha um lado farsesco que explorava o truque cinematográfico capaz de transformar um país em outro – com todo o comentário político que esse gesto tem – o skyline de Nova York que contorna o “palco” de Carnage faz lembrar frequentemente de Festim Diabólico (1948), de Alfred Hitchcock.
Em ambos os filmes, a cidade – melhor ainda se falsa, se só apenas a imagem de uma cidade em maquete ou back projection – serve como uma moldura do fora de cena que acentua a tensão dramática do que está dentro da cena. Mas enquanto Hitchcock usa essa moldura para sufocar o tempo a passar do dia pra noite e, citando Lourcelles, “acentuar de forma surpreendente a tensão e o mal-estar suscitados pela intriga”, Polanksi usa Nova York – desde a aparição da ponte do Brooklyn, no primeiríssimo plano do filme – para localizar e determinar os comportamentos das personagens. Não à toa, o diretor brincará com os limites possíveis da cena por diversas vezes, ameaçando deixar a trama escorrer para o poço do elevador, e depois arranjando uma razão estapafúrdia para levar a tensão de volta ao conforto do apartamento. Pois, para que Carnage exista, é preciso que as personagens estejam em um espaço muito definido. É preciso que elas se sintam em casa. Sendo Carnage uma sátira social, não há dúvidas que é uma fatia específica da sociedade nova iorquina – e a maneira como o cinema de boa consciência e más intenções a projeta como ideal ao resto do mundo – que Polanski tem como alvo.
Aí está, talvez, o grande trunfo do filme. Pois ao longo de boa parte da duração de Carnage, Polanski equilibra com bastante controle a cortesia etiquetada e contida de uma classe média-alta com desejos de elite e a exposição de seus preconceitos, fraquezas, falsas ideologias e crises de consciência. O filme é não só o desnudamento progressivo desse reino de aparências, mas também o regozijo de poder vomitar sobre uma pilha de catálogos raros de exposições de arte que enfeita a mesa de centro da sala, e fazer troça das mulheres belas e justas que anunciam ao mundo sua preocupação com a África e a paz mundial, sem se dar conta de que há violência no jogo de forças de seu próprio lar. Em época que “pacificado” se tornou sinônimo de progresso, Polanski faz um filme necessariamente chulo em sua irreverência, desmontando fortalezas de clichês ideológicos para revirar as tripas de uma geração que tenta de toda forma esconder suas fragilidades.
Não deixa de ser lamentável, porém, que justamente quando o filme completa esse desarme, Polanski pareça não mais saber o que fazer com ele. Quando se chega ao “ou vai ou racha” das personagens, quem se despedaça é o próprio filme, trocando a paciência que cozinhava humores em banho-maria (sem se dar conta de que a água já estava fervendo) por soluções apressadas e um tanto desesperadas de encenação – desmedida bastante aparente na atuação de Jodie Foster, um contraponto um tanto triste à precisão e amplitude de Christoph Waltz, John C. Reilly e Kate Winslet, mas que está bem além da alçada da atriz. Na insistência de pressionar toda vulgaridade, Carnage acaba se contaminando. Quando a obstinação em apontar o dedo (ou de cutucar um pouco mais fundo as feridas já abertas) vem antes de seu cuidado cinematográfico, o filme se torna também vulgar. E ao final – que retoma as externas, continuando o plano de abertura do filme – a cortesia recomeça, o jogo de aparências dá novamente seus primeiros passos, e Polanski não parece assim tão diferente de suas personagens, extremamente excitadas com o que têm a dizer, mas nem sempre dispostas a sustentar e testar suas convicções nos limites de suas palavras.