Publicado originalmente na Cinética em Maio de 2011.
Politicamente clássico narrativo
Em época em que o histrionismo contamina até mesmo os mais dedicados trabalhos de contenção no cinema, não é surpreendente que um diretor como James L. Brooks siga com uma carreira que passa longe dos focos de atenção. Pois com a exceção de outros sobreviventes (feridos ou não), como Rob Reiner, ou filmes pontuais de estranha vocação anacrônica – como Eu, Meu Irmão e Nossa Namorada (2007), de Peter Hedges – James L. Brooks é um dos últimos bastiões de um cinema que lida de fato com uma tradição do clássico narrativo em Hollywood. Nos filmes de James L. Brooks, esse ensejo não vem contaminado pela propensão metalinguística do trabalho recente de Nora Ephron, a inflamação personalista de Woody Allen, a oxigenação do gênero que aparece em diretores tão distintos quanto Judd Apatow e James Gray, ou mesmo a releitura barroca do clássico narrativo, seja pelo fetiche cinematográfico (Tarantino), pela ironia blasé (Scorsese em Ilha do Medo e Coppola em Tetro) ou pela pulsão bruta do espetáculo (Spielberg e Tony Scott). Não é, tampouco, um retorno ao clássico narrativo da década de 1940, como faz Eastwood, mas sim a conservação do que era feito – inclusive pelo próprio Brooks – na década de 1980, como prole yuppie da Nova Hollywood. Exatamente como em Melhor é Impossível (1997) e Espanglês (2004), James L. Brooks segue fazendo filmes centrados em uma timidíssima pretensão: contar uma história com imagens.
É natural, porém, que tal pretensão não sobreviva imune aos efeitos do tempo, e os primeiros minutos de Como Você Sabe deixam isso bem claro. Temos Reese Whiterspoon fazendo o papel de uma heroína afável, Owen Wilson fazendo um suposto canalha que é tão afável quanto, e Paul Rudd em momento bastante especial. Mas, por mais que seu tom de conto de fadas seja sedutor e os atores consigam nossa adesão sem nunca perder a dignidade, há minutos bastante pesados até se chegar ao feelgood tão indispensável às comédias românticas. E mesmo quando já estamos lá, é preciso ainda lidar com uma ponta de aborrecimento que o filme parece disposto a arrastar até o final: uma vez que já sabemos quem é o mocinho e quem é a mocinha, quanto tempo levará para que eles fiquem juntos? Como restabelecer o pacto tão necessário ao clássico narrativo com um espectador hoje já tão cínico e disperso, tão pouco propenso a se concentrar em qualquer coisa que não grite à sua frente?
A resposta vem em uma cena chave do filme. Quando Paul Rudd e Reese Whiterspoon se deparam com a atmosfera crescente de um clímax romântico em um ponto de ônibus, a cena é bruscamente interrompida pela chegada precoce do ônibus. Eles se despedem com correção, ela embarca com resignação e o vê pela janela, se debatendo com a própria má sorte. É neste momento, diante da ruptura brusca da perfeição do momento clássico narrativo por excelência (aqueles que, quando vivemos, tão frequentemente dizemos parecer coisa de cinema) que a heroína toma uma iniciativa que parece sintetizar com precisão o valor de Como Você Sabe: ela faz sinal e desce do ônibus.
Se há, portanto, alguma possibilidade de sobrevivência do clássico narrativo no mundo hoje, ela está justamente na eloquência do gesto de quem compreende que a perfeição da construção cinematográfica é, antes de mais nada, uma questão de fé. A ruptura do clímax romântico não é aceitável por meros acasos contingentes; ela precisa ser cultivada, buscada de forma voluntária e íntegra; ela é questão de atitude. Há algo de político neste gesto ativo de felicidade, e ele não é em nada diferente dessa obstinação de James L. Brooks em manter seu cinema livre de afetações ou esforços de estilo em um momento onde mesmo o clássico narrativo usa de toda sorte de artifícios para buscar novo fôlego. Em Como Você Sabe, o diretor segue em sua dedicação exclusiva à costura transparente de uma irrealidade aberrante que o filme propõe com serenidade, na montagem paralela que encaixa todas as peças com a inevitabilidade do final feliz. Nesta época tão marcada pelos efeitos de décadas comprometidas com a quebra de qualquer ingenuidade do espectador, a entrega voluntária a uma experiência plena – mesma que interrompida pelas contingências do azar, esse desvio onisciente da ironia – e ao cultivo de um momento que o cinema raramente parece ainda capaz de comportar é de uma entrega bastante incomum.
Em Carta a D’Alembert, Rousseau interditava o teatro temendo pelos pobres homens que, após passarem horas fantasiando com as mulheres idealizadas pelos autores, fossem condenados à frustração de não as encontrarem no mundo real. O mesmo discurso está presente em um dos bastiões, para o bem e para o mal, da comédia romântica moderna: Alta Fidelidade, o romance de Nick Hornby, trocando o teatro pela música pop. Mas James L. Brooks sabe que não é possível assumir que, após Debord, Godard e cia, o homem contemporâneo se pareça tanto assim com os relojoeiros de Genebra no século XVIII – não é à toa que o protagonista de Paul Rudd seja culpado justamente por sua ignorância, por sua obstinação em não saber, verbo que o filme traz no título. O que faz de Como Você Sabe um filme raro no cinema atual é essa atitude à Murnau, no antológico intertítulo de A Última Gargalhada (1925), de compreender o gesto clássico narrativo como uma profissão de fé, como um compromisso autônomo e voluntário possível no mundo moderno. É a percepção de que interessa menos a mulher idealizada, a relação idealizada, e mais a entrega abnegada e inadiável de se estar sempre à busca da realização do ideal. E de que, na eloquência deste gesto, há algo de francamente admirável.