Publicado originalmente na Cinética em Abril de 2011.
Orquestrando o caos
Tomemos o prólogo de Um Convidado Bem Trapalhão como uma declaração de princípios: uma cena de guerra, filmada com todo o decoro épico do cinemascope, sabotada por dentro por um figurante responsável apenas por tocar a corneta de batalha. A simples impertinência daquela presença motiva um corte de diegese, e Blake Edwards mostrará, em seguida, os bastidores daquela produção. Durante a preparação de uma cena complicadíssima – a explosão de uma fortaleza que não poderá ser reconstruída, e que deverá ser filmada em uma única tomada – Hrundi V. Bakshi (Peter Sellers), o corneteiro obstinado, acidentalmente antecipa a explosão, pondo o prédio ao chão antes mesmo que as câmeras tenham começado a rodar. Não faltam margens nessa cena e em todo o filme restante para leituras políticas – a mais célebre, talvez, a de Pascal Bonitzer para os Cahiers du Cinema, vendo em Sellers uma alegoria para o terceiro mundo que, em seguida, destrói uma mansão que simbolizava Hollywood. Mas há, neste prólogo, uma eloquência de ruptura que é interna à sua própria organização. Pois, após explodir a locação empoeirada daquele épico de guerra, Um Convidado Bem Trapalhão se trancará em uma casa construída em um estúdio, mas que funciona como um estúdio de fato, com toda sua mobilidade interna e sua riqueza de adereços e objetos de cena expostas e exploradas na mise en scène de Blake Edwards.
O que temos aí é não somente uma simples troca de gêneros (o filme de guerra pela comédia física) e de espaços (os exteriores fidedignos a uma suposta representação deles próprios por uma casa construída para não parecer de fato uma casa), mas sim o traço primeiro de um interesse que será desenvolvido ao longo de todo o filme: a concentração absoluta em pouquíssimos elementos que são explorados em toda sua multiplicidade interna. Pois se há algo ainda impressionante no cinema de Blake Edwards – para além de sua anarquia alegre e seu trabalho sempre impressionante de inserção e mobilidade dos atores no espaço – é justamente esse encanto diante de um mundo que está em constante transformação e pode nos surpreender incessantemente, algo já exposto na batalha épica que, com um corte, se transforma em filme dentro do filme.
Se há também, na mudança dos exteriores para os interiores, um subtexto nesse sentido – afinal, a realidade áspera das locações é explorada por um cinema que se quer vida real pelas mesmas pessoas que convertem, no restante do filme, seus lares em estúdios cheios de truques de cinema – é porque Blake Edwards opera transformações semelhantes em diversos níveis dos filmes. Como evidência maior, a casa, um autômato fabuloso e ridículo tão próximo do modernismo decadente da casa de Meu Tio (1958), de Jacques Tati, quanto da organicidade percussiva das portas que batem na mansão de A Regra do Jogo (1938), de Jean Renoir, decorado e ambientado com toques da lounge art – tendência presente na direção de arte daquela época em filmes tão diferentes quanto A Juventude da Besta (1963), de Seijun Suzuki, e Cassy Jones – O Magnífico Sedutor (1972), de Luís Sérgio Person. Blake Edwards confina sua câmera a este único espaço, mas esse mesmo espaço se desdobra em um constante jogo de re-significação, surpreendendo à câmera (vale sempre lembrar que Um Convidado Bem Trapalhão era também um filme de método, realizado todo em sequência cronólogica, com cenas absolutamente improvisadas que determinavam os rumos das cenas seguintes) e o espectador. Os objetos perdem suas funções originais e são lentamente transformados pela contingência do caos coletivo, em uma dinâmica constante de transmutação não muito distante do Síndromes e um Século, de Apichatpong Weerasethakul.
Mas tal relação com o espaço é apenas indício de uma persistência que, em Um Convidado Bem Trapalhão, funciona como um verdadeiro ethos realizador. Pois se os objetos, as personagens e as cenas estão em constante transformação, isso só acontece porque Blake Edwards inscreve cada um deles em uma duração cuidadosamente erigida que permite que essas mudanças sejam percebidas. O cinema de Blake Edwards vive desse binômio um tanto paradoxal em que as mudanças incessantes do mundo só são percebidas por um olhar que se dispõe impassível, sereno em sua obstinação de expor o mundo ao tempo e os seres ao contato, promovendo e registrando mudanças que ocorrerão nessa fricção.
Se as melhores comédias têm sempre algo de político, por ressaltar o conflito entre o sujeito e uma determinada ordem de conduta social, Um Convidado Bem Trapalhão traz esse conflito na relação entre a cena – o caos instaurado pelo diretor e seus cúmplices/atores – e a câmera – no caso de Edwards, quase sempre impassível, imperturbável, tranquila diante da bagunça generalizada que o diretor cuidadosamente orquestra. Um Convidado Bem Trapalhão é, portanto, um filme que se nutre da manipulação expressiva de duas qualidades essenciais do cinema: o espaço e o tempo. Passado o prólogo, as gags de Um Convidado Bem Trapalhão são construídas pela distensão de cada indício de graça em uma duração fora do comum que transforma o ordinário em extraordinário. Nas mãos certas, basta um sujeito estar apertado para ir ao banheiro para se criar 90 minutos de grande cinema.