Publicado originalmente na Cinética em Março de 2011.
Um clássico moderno
Nos finalíssimos minutos de Um Assunto de Mulheres, a banda sonora é invadida por uma surpreendente narração em voz over. Os últimos passos de Marie (Isabelle Huppert) são contados pela voz de seu filho, já adulto. Ele confessa uma parcialidade da memória que atesta contra a possibilidade das imagens: a morte de sua mãe lhe foi contada; ele não a presenciou. Mas vemos as imagens impossíveis de Marie caminhando para a guilhotina, com toda a ritualística cerimonial do sacrifício. De onde vêm essas imagens? Quem as presencia? Há uma presença possível para além da fabulação e da imaginação daquele narrador? O corte final é reservado para a própria lâmina da guilhotina: quando ela é destravada alvejando o pescoço da protagonista, o filme termina. Essa mudança brusca e inesperada no ponto de vista da narração obriga o espectador a repensar tudo que havia visto até então enquanto correm os créditos finais. É o tipo de ato violento que explicita com rara clareza algumas das questões centrais do cinema de Claude Chabrol.
Em primeiro lugar, há um desconforto um tanto natural diante dos filmes de Chabrol e aquilo que sabemos de sua biografia. Pois, aparentemente, vários de seus filmes parecem por demais clássicos para serem enquadrados no conjunto de obra dos diretores da nouvelle vague – grupo de jovens críticos franceses que requisitaram, e em certa medida cumpriram, outras responsabilidades ao cinema. Mesmo na obra de Eric Rohmer, a idéia de clássico é retomada por via do classicismo – ou seja, por uma inflamação do clássico, uma compreensão moderna de o que ele seria, revisitando e revitalizando algumas de suas características mais marcantes já com um distanciamento não desprovido de uma certa ironia: o classicismo é uma forma de se realizar o paradoxo de se chamar atenção para a adoção dos motifs clássicos, de quebrar a diegese criando uma diegese inquebrantável. Os procedimentos, a aparência e o significado do clássico são resgatados por uma atitude que é, em última instância, moderna. O classicismo retoma a transparência do clássico, expondo essa mesma transparência em opacidade.
No caso de Chabrol, não parece haver classicismo, mas sim um domínio exímio da produção de transparência. Quando se vê Um Assunto de Mulheres, não há distanciamento possível: é preciso estar ao lado de Marie, compreender a dimensão de seus sonhos, sentir suas dores, compartilhar suas ambições, ser cúmplice em seus segredos. Todo o filme é construído de maneira a produzir essa proximidade, em uma combinação do esquartejo espacial cirúrgico de um Bresson (um filme de mãos, de objetos, de detalhes), com a sensorialidade artificial de um Hitchcock (o envolvimento pela evocação de cheiros, sabores, temperaturas, etc). Mas Chabrol é um sujeito de seu tempo e sua arte floresce no seio da modernidade cinematográfica. Um Assunto de Mulheres não é, definitivamente, um filme fora de sua época, e o envolvimento que ele requere em nada depende de uma suposta ingenuidade do espectador clássico. Um pouco como em Fassbinder, a operação central de Um Assunto de Mulheres é da perversão do clássico por um atitude moderna que implode a transparência sem abrir mão de seus efeitos. Ao contrário, a perversão só é possível por a transparência ser alcançada: tudo aquilo que vimos não era exatamente aquilo que acreditávamos estar vendo. Mas não acreditamos?
Quando a voz do pequeno Pierrot toma a banda sonora – voz já amadurecida, já transformada por um devir que Chabrol tira de um extracampo imprevisto e até então impensável – o que acontece é mais do que uma simples surpresa final. Pois essa pequena mudança transforma o que parecia onisciente – uma câmera e um recorte espaço temporal deliberados, que respondem a uma instância indeterminada – em uma visão pessoal, parcial e memorialística. Com isso, toda a relação aparentemente causal que organizava a narrativa ganha um sentido oposto: o filme deixa de ser uma organização linear e finalista, e passa a ser uma busca no passado por evidências e articulações que possam conferir algum sentido a uma experiência pessoal daquele narrador. É um corte capaz de transformar qualquer flerte com a vulgaridade narrativa em algo absolutamente invulgar: se Pierrot diz, ainda criança, que gostaria de ser um carrasco quando crescesse, ou ainda se é há um claro paralelismo no sacrifício em praça pública de um pato e a decaptação final de nossa heroína, isso não se dá por necessidades premonitórias de dramaturgia, mas sim pelo desespero de um homem que tenta remontar seu passado, encontrando evidências daquilo que já se sabe inevitável, tentando conferir algum sentido a um trauma que se funda na ausência de explicações possíveis. Por que mataram minha mãe?
Um Assunto de Mulheres é um filme sobre esse trauma, sobre a lâmina que corre pelos trilhos em direção ao pescoço de uma mulher que tentava sobreviver – física e psicologicamente – da melhor maneira possível ao horror que a cercava, sabendo que o trem não deixaria de passar ao lado de sua casa, mas com a certeza de que dormir em um quarto sem o barulho do trem era tormenta mais suportável do que ter sua intimidade devassada por aquela máquina feroz e faminta. O trem e a guerra não deixam de estar lá, à espreita, mas viver é também ignorar a inevitabilidade da morte, ou mesmo abraçá-la como parte da vida (lembremos que Marie é uma aborteira, mas que essa atividade vem da necessidade das mulheres vivas, e não por um apreço funesto pela morte como exemplo – exatamente o contrário do futuro reservado para a protagonista). Tudo no filme vem desse último corte, da necessidade de dar sentido a um sacrifício bestial em um mundo marcado pela bestialidade, onde a ética tomou o lugar da moral e a justiça se divorciou da justeza.