Publicado originalmente na Cinética em Março de 2011.
Sonho de indústria
Rio está fadado a estimular ao menos dois braços de desrazão. O primeiro está no orgulho ufanista que abraça o filme como uma linda homenagem ao Rio e ao Brasil, enfim cumprindo o desejo tão frequentemente vociferado pela classe média por filmes que mostrem “o lado bom” do país e de sua mais representativa metrópole. É, portanto, o tipo de relação que toma o cinema – uma arte que, mesmo não apartada do mundo, responde a questões que lhes são próprias – por publicidade, realizando-o enfim como indústria de sonhos, capaz de consumar os nossos mais desvairados desejos de afirmação e carências de auto-estima. O segundo está na patrulha ideológica que se alimenta de seu próprio complexo de inferioridade, e que buscará nos macacos ladrões, na personagem abobalhada do ornitologista Túlio (com voz de Rodrigo Santoro) e em todos os diversos erros factuais (para quem habita este espaço, Rio é um retrato tão inexato da cidade quanto as back projections de Interlúdio, de Hitchcock, e isso nada tem a ver com cinema), metáforas forçadas para reconhecer no filme mais um exemplo de ignorância e dominação yankee – e que isso seja feito por um brasileiro, um expatriado servindo ao “inimigo”, serve só como combustível para aprofundar o despropósito.
De fato, Rio oferece substrato suficiente para esse tipo de leitura. Isso não impede, porém, que ambas estejam bem longe de dar conta do filme. Afinal, Carlos Saldanha tem o visível cuidado – diria até excessivo – de relativizar os vetores principais de sua encenação, seja criando um contraponto não só visual entre o Rio de Janeiro e a cidadezinha do interior do Minnesota, seja pensando a cidade mais como uma rede de tensões dramáticas do que de fato como um cartão postal ou uma ficha criminal. Pois se há algo marcante no grosso da produção de animação atual – em especial a “sub-Pixar”, como é o caso – é a maneira como os filmes são apenas adaptações em série de certos padrões clássicos de dramaturgia para universos diferentes, capazes de reproduzir suas relações de força principais, mas sempre com novas cores, texturas, sons e paisagens. Em Rio, temos apenas mais uma representação do mito de Orfeu – e a lembrança de Orfeu da Conceição, de Vinícius de Morais, e sua adaptação para o cinema por Marcel Camus, em Orfeu Negro (1959), é bastante significativa do tipo de alinhamento buscado pelo filme de Carlos Saldanha. Orfeu, inclusive, que o cinema de animação já ressuscitou diversas vezes no passado recente, seja em A Viagem de Chihiro (2001), de Hayao Myiazaki; A Noiva Cadáver (2005), de Tim Burton; ou Coraline e o Mundo Secreto (2008), de Henry Selick. É preciso ir ao inferno para se recuperar o amor e, enfim, habitar o paraíso. Em Rio, ambos, inferno e paraíso, são partes conviventes de uma mesma cidade.
O filme, portanto, não é a obra de exceção que os corações nativos adorariam que ele fosse. Ao contrário, a vinda ao Rio – e o encontro fortuito com a origem de um diretor respeitado pela indústria – é apenas uma nova forma de manter as engrenagens rodando, e de criar um novo filme propositalmente parecido com tantos outros, e que será esquecido com a mesma rapidez. Quem ainda se lembra de O Espanta Tubarões (2004)? O esquecimento, inclusive, é contrapartida necessária para essa linha de montagem: como os filmes são apenas novas embalagens para uma mesma estrutura dramatúrgica que é repetida ad infinitum, é preciso que essa embalagem seja suficientemente surpreendente em relação à anterior, mas não marcante o bastante para inviabilizar sua próxima encarnação. Vai-se ao Brasil porque o fundo do mar (ou a era glacial; ou Madagascar; etc) já deixou de ser surpreendente, e as cores do desfile de escola de samba e das praias cariocas são próximas o suficiente da vegetação marítima para criar um espaço reconhecível e abrigar as mesmas situações, mas também diferentes apenas o necessário para se criar a ilusão de novidade.
Essas implicações de projeto não fazem de Rio um filme necessariamente repudiável ou antipático. São claras a habilidade e o esmero técnico e tecnológico característicos da indústria, que Carlos Saldanha aproxima da estrutura tradicional da chanchada – incluindo seus números musicais irreverentes e seu absurdo otimismo – produzindo um micro-choque de mundos também na forma do filme, na convivência de pontas opostas da ostentação e precariedade. Mas mesmo esses momentos de alguma graciosidade não conseguem disfarçar ou distrair da natureza de um filme já visto muitas vezes, com outros bichos, outras vozes, outros lugares, outras piadas, mas ainda assim os mesmos bichos, as mesmas vozes, os mesmos lugares, as mesmas piadas. E para um sujeito que vai ao cinema em qualquer lugar do mundo que não o Brasil ou o interior do Minnesota, Rio será apenas mais um desses filmes, suficientemente diferente para valer o preço de um ingresso, mas devastadoramente igual para deixar qualquer lembrança. Rio não é mais do que um bom negócio.