Publicado originalmente na Cinética em Março de 2011.
Um filme de Adam Sandler
Adam Sandler é um sujeito curioso. Formado nas divisões de base do Saturday Night Live, criou um estilo de humor bastante improvável, com uma dicção que beira o ininteligível, piadas que debocham de sua própria grosseria e falta de traquejo, e um claro desejo não-correspondido de ser uma espécie de rockstar entre os judeus americanos. O que é mais surpreendente, porém, é que todo esse plano deu certo. Adam Sandler é não só um embaixador para as massas do humor calcado na mais pura demência – hoje reproduzido tanto nos trabalhos de Will Ferrell e Tracy Morgan, que seguiram os passos de Sandler no SNL e levaram adiante várias de suas estratégias, quanto em personagens de desenho animado como Bob Esponja – mas também uma espécie de penúltimo bastião dos farrapos do star system. Às favas com Dennis Dugan – o diretor medíocre que assina vários dos projetos do ator -, com a vivacidade dos roteiros, com o interesse da trama, com o possível brilho de seus coadjuvantes: quando vamos ao cinema ver um filme como Esposa de Mentirinha, vamos para ver “um filme de Adam Sandler”.
Esse estranho e particularíssimo sub-gênero da comédia norte-americana traz, ainda, regras que garantem, de fato, uma espécie de unidade – a ponto de isso ser abertamente debochado por Judd Apatow e o próprio Sandler, sempre um dedicado auto-parodista, no legado de falsos filmes de sua personagem em Tá Rindo do Quê? (2009). Pois com a exceção do filme de Apatow, da desconstrução da persona do ator por Paul Thomas Anderson em Embriagado de Amor (2002), e do menos auto-paródico Como se Fosse a Primeira Vez (2004) – em que o fator “filme de Adam Sandler” é equilibrado pela contrapartida “filme de Drew Barrymore” – os filmes de Adam Sandler são todos razoavelmente parecidos. Todos eles partem de premissas promissoras e têm piadas pontuais inegavelmente potentes, mas são também marcados por uma espécie de dívida social a ser sanada (uma mentira, uma deficiência, uma doença, uma ausência, uma fortuna injustificada, ou uma combinação de mais de uma das características citadas), que desemboca inevitavelmente na papa rançosa dos family movies – algo que inclusive se torna alvo no filme de Apatow.
Toda essa bagagem vem junto com o ingresso quando se vai ao cinema para ver Esposa de Mentirinha. E embora todas as limitações saltem aos olhos nos primeiros minutos de filme, é difícil não torcer por Adam Sandler. Afinal, ele parece sempre disposto a tudo: a esculhambação que ressalta o quão estapafúrdia é uma premissa que poderia ser assumida sem grande culpa no gênero no qual o filme se insere (no caso, uma comédia romântica); a determinação em colocar em cena crianças que são manipuladoras, agressivas e interesseiras (sem, cúmulo da perversão, jamais perderem a doçura); a crítica direta e nada isenta a certos padrões de vida contemporâneos (todo um culto ao corpo que é tratado de forma muito ambígua, e nada ingênua, pelo filme). Mas, mais do que isso, na primeira metade de Esposa de Mentirinha, o espectador de fato parece ter onde se segurar, fazendo com que a torcida por Adam Sandler não seja um disparate tão grande assim: há uma gag antológica em slow motion, atores quase sempre em bom momento, e personagens que guardam algumas boas surpresas nos bolsos.
Mas acompanhar a trajetória de Adam Sandler traz também alguns aprendizados, e o mais importante deles é não se deixar empolgar demasiadamente com as primeiras migalhas, pois elas podem não ser mais que os marcadores de caminho que levam diretamente à boca do lobo. Quando Esposa de Mentirinha parte do estabelecimento da trama nos EUA e ruma para a liberdade controlada de um resort no Havaí, sua graça e leveza vai se transformando em desespero, seja para salvar piadas que já nascem condenadas ao fracasso, seja para, pior ainda, encaminhar o filme à moralidade dos family movies. É aí que Esposa de Mentirinha vai perdendo fôlego considerável a cada novo passo, sacrificando sua disposição pela necessidade de redimir as personagens em um romance sem muita justificativa. Não à toa, as possibilidades de humor nesta segunda parte parecem condensadas no desespero da gag em que a personagem interpretada por Dave Matthews pega um coco com as próprias nádegas em um palco de dança de casais.
Dentro dessa caminhada, que parte da comédia esdrúxula para o romance, é possível até buscar elementos dignos de alguma defesa. É especialmente notável, por exemplo, como a concorrente de Jennifer Aniston não precisa ser transformada em uma megera (como em Antes Só do que Mal Casado, filme dos Farrelly que sombreia toda a projeção) para justificar as curvas românticas das personagens. Tal exercício de defesa, porém, em nada amenizaria a primariedade da encenação e o completo embaraço do filme na convivência de suas poucas modulações. Esposa de Mentirinha parte de uma premissa instigante, tem momentos notáveis de humor, limitações cinematográficas bem claras, e aos poucos vai se diluindo de tal forma em seu mingau redentor que a decepção se torna inevitável. E não é exatamente isso que faz “um filme de Adam Sandler”?