Publicado originalmente na Cinética em Fevereiro de 2011.
Política de relação
Em época atiçada pelo relativismo, O Dinheiro – último filme de Robert Bresson – clama por definições categóricas: trata-se da obra-prima de um dos maiores criadores da ainda breve história do cinema. Não deixa de ser sintomático, porém, que o gênio de Bresson frequentemente escorregue entre os dedos porosos das antologias e da taxonomia de afetos que coleciona planos e trechos de diálogos como pequenas pílulas do sublime. Pois, embora Bresson tenha sido um dos mais ávidos pesquisadores da criação do sublime no cinema, o brilho de seus filmes raramente transparece no esquartejo sistemático que busca localizar com precisão onde a graça se manifesta. Que a crítica e a academia não se culpem pela violência por vezes necessária no contato com as obras: O Dinheiro só faz provar que, como todos os maiores filmes, sua força não está contida em suas partes, e ela escorrerá incólume pelos cortes deixados por qualquer tentativa de desmonte ou recomposição.
Citando o próprio Bresson, em um dos aforismos de seu Notas sobre o Cinematógrafo: “Se uma imagem, olhada à parte, expressa nitidamente alguma coisa, se ela comporta uma interpretação, ela não se transformará no contato com outras imagens. As outras imagens não terão nenhuma força sobre ela, e ela não terá nenhuma força sobre as outras imagens. Nem ação, nem reação. Ela é definitiva e inutilizável no sistema do cinematógrafo. (Um sistema não regula tudo. Ele é o detonador de alguma coisa)”. Mesmo em seus momentos lapidares, como os caminhos estranhos que levam à epifania na fala final de Pickpocket (1959), o cinema de Bresson é marcado por uma determinação que impede a exclusão ou a desarticulação da parte com o todo (os caminhos imprimem a necessidade de uma trajetória, mais do que a teleologia do objetivo final).
O perigo de filmes tão incontornavelmente íntegros como O Dinheiro é gerar justamente a paralisia crítica, a afasia improdutiva de quem experimenta o milagre, mas dele não consegue mais sair. No cinema de Bresson, tal autismo seria ainda mais trágico: filmes como Pickpocket, O Processo de Joana D’Arc (1962) ou Au hasard Balthazar (1966) são justamente sobre personagens (ou, no caso de Balthazar, sobre a encarnação literal do sublime na presença de uma mula) que foram ao céu e retornaram, que tiveram o momento de clarividência e voltaram, em sequência, às trevas cotidianas.
E aí chegamos a O Dinheiro – seu epitáfio aparentemente apocalíptico e niilista – e percebe-se que o que faz do filme uma obra-prima não é, como se espera, seus planos, suas ações, seus momentos individuais. Ao contrário, O Dinheiro é o filme definitivo de Bresson por tematizar a política da estrutura de seus filmes: assim como a decupagem e a montagem, o universo do filme é regido por relações que, mesmo quando completamente arbitrárias, determinam ações e reações, e tiram seu significado do contato entre os pequenos núcleos (as cenas, ou as pessoas). Diante da primazia de seu protagonista-título, as personagens gélidas e robotizadas têm suas ações comandadas pela arbitrariedade conveniente das circunstâncias, à medida em que o foco narrativo do filme segue passado de mão em mão, como a nota que o protagoniza. O Dinheiro é um filme não sobre personagens individuais, nem sobre pequenas narrativas de vida, mas sim sobre esse personagem-sistema que o dinheiro representa, e que impõe uma regra indistinta e acrítica a tudo que a ele está submetido. “Filme de cinematógrafo em que as imagens, como as palavras do dicionário, somente têm força e valor pela sua posição e relação”.
Mas um sistema, lembremos, “não regula tudo. Ele é o detonador de alguma coisa”. E a nota de 500 francos, como qualquer sistema, é ainda por cima uma nota falsa – uma aparência de ordem e autoridade sem qualquer lastro, forjada para se conquistar um determinado objetivo. Ela é apenas o detonador de uma série de relações aleatoriamente opressoras, que confinam as personagens a um esquema deliberado de convívio e representação. À primeira vista, tal fatalismo pode aproximar erroneamente O Dinheiro de um outro cinema “de qualidade” francês – para o qual a geração da nouvelle vague tinha como o antídoto os filmes do próprio Bresson – no qual a soberania do sistema de representação eventualmente se transformava em tirania e automatismo. Mas Bresson – criador de um conjunto de diretrizes aparentemente austero que ele veio a chamar de “cinematógrafo”, e que determinava toda sua relação com a cena – não só se dedicava a encontrar soluções formais (os procedimentos) que respondessem apropriadamente à matéria de cada filme (as cenas), como usava-o para propiciar que o mistério se consagrasse. Sobre seus “modelos”, escreveu: “o importante não é o que eles me mostram, mas o que eles escondem de mim, e sobretudo o que eles não suspeitam que está dentro deles“.
Se O Dinheiro é também um filme sobre a própria política de encenação bressoniana, é inevitável que nele exista, também, algo que foge ao sistema, algo de desconhecido que é detonado por ele. É o caso de Yvon Targe, personagem de Christian Patey, a quem acompanhamos ao longo de quase todo o filme, mas que nem por isso chegamos perto de conhecer integralmente. Não à toa, mais surpreendente do que a violência de seus atos finais é a maneira como ele assume seus atos, entregando-se às consequências que ecoam na ausência dos créditos finais. Pois em um filme marcado pela rigidez formal interna e externa à diegese, é no ato final de Yvon que encontramos a síntese do pensamento de Robert Bresson: que não aceitar jogar segundo as regras do jogo, que não deixar que ela determine o seu futuro – uma vez que já determinou seu passado e seu presente – e que, como o Bartleby de Herman Melville, impor a política de quem prefere não fazer é, no fim das contas, o atestado último e possível de uma verdadeira liberdade.
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