Publicado originalmente na Cinética em Dezembro de 2010.
Políticas da forma
Os leitores desta cobertura já devem ter reparado o quanto questões de referência e derivação são frequentemente evocadas nestes textos, e ao fim da competição deste Festival de Brasília é possível detectar com clareza as marcas deixadas pela cinefilia na produção. A maior parte dos filmes em competição, entre curtas e longas, tem matrizes muitos específicas e fáceis de se detectar. A vontade de dialogar com suas influências é compreensível, especialmente em uma produção jovem, mas quando filmes passam a ser chamados levianamente de “ovnis”; ou quando “invenção” e “coragem” se tornam as palavras da vez em quase todos os discursos de apresentação, é preciso colocar certas coisas em perspectiva. Com a exceção de Transeunte (2010), de Eryk Rocha – filme que dialoga visivelmente com a história do cinema, mas do qual não é possível apontar referências específicas em um primeiro contato, nem mesmo as que o diretor citou em debate -, os filmes apresentados em Brasília são de diretores que viram algumas coisas importantes no cinema e que propõem diálogos com elas, mas que, mesmo quando interessantes, ainda estão longe de oferecer uma proposta sólida e nova de cinema. Em geral, quando vemos uma penca de filmes sendo considerados obras de exceção, tais afirmações tendem a dizer mais sobre a falta de conhecimento dos autores com as quais os filmes dialogam do que propriamente de sua originalidade.
O Céu no Andar de Baixo, animação dirigida por Leonardo Cata Preta, é um bom exemplo dessa deformação celebratória. Pois, por mais que haja um cuidado visível com cada detalhe em quadro e uma constante impressão de pulsação interna mesmo quando o filme se concentra no estático, seu estilo não vai muito além da combinação da mistura de materiais e da predominância da voz over de um Don Hertzfeldt (embora o texto – em grande parte o que faz de Hertzfeldt um artista excepcional – seja de natureza bem menos particular) com o traço deformador de Sylvain Chomet. Como a animação é tomada muitas vezes como um nicho autônomo dentro do cinema, é bastante fácil que tais referências escapem ao repertório cinefílico do espectador, e que a técnica de Cata Preta seja tomada como inovação de estilo. O Céu no Andar de Baixo é um filme de inegável esmero técnico e de alguma desenvoltura na criação de universo, mas que tem fragilidades de dramaturgia consideráveis e uma leve tendência à pieguice – algo impensável, por exemplo, na obra do próprio Hertzfeldt. Dividido entre essas duas pontas, o filme está mais para um trabalho de aluno aplicado do que para uma obra realmente empolgante artisticamente.
Custo Zero, de Leonardo Pirovano, tenta injetar fôlego no imaginário da violência carioca com uma variedade de texturas visuais, indo das cores ao preto e branco, passando por momentos de vídeo extremamente ruidoso que fazem lembrar o trabalho de Michael Mann em Miami Vice. Mas, além de ser usado sem maior critério, o esforço material se perde como pequeno índice visual em um filme que na verdade parece mesmo querer desfilar seu vocabulário de bandidagem, em um registro que não é nem exatamente realista, nem suficientemente estilizado. Se é difícil pensar em um cinema de gênero com verve textual sem lembrar dos primeiros filmes de Quentin Tarantino, é igualmente evidente que Tarantino combina sua dedicação aos diálogos com um domínio preciso dos tempos e da mise en scène, além de um talento raro em seus enquadramentos. Custo Zero trava em sua verborragia, tomando os clichês de representação como se eles fossem um trabalho de iconografia, e aderindo às convenções de gênero sem maior inventividade.