Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2010.
O trágico sublime
É difícil voltar a A Regra do Jogo sem retomar sua história. Clássico improvável do cinema mundial, o filme de Renoir causou revolta em suas primeiras exibições: foi banido dos cinemas franceses em sequência por desmoralizar os valores da sociedade francesa, praticamente desapareceu da face da terra durante a ocupação nazista, e sobrevive em uma versão que não é exatamente a original, remontada quase integralmente (Renoir dizia que uma sequência de seu corte oficial não teria sido mais localizada), a partir de planos originalmente descartados na primeira montagem. Além disso, há também as décadas de discurso crítico sobre o filme, que empurram para dentro do texto termos como realismo poético, profundidade de campo, plano-sequência e o nome de André Bazin.
O filme segue envolto na própria história, e ela – que o determina, com muita justiça, como um clássico – é a mesma que tranca o filme atrás das grades e, em seguida, nos oferece as chaves.
Retomar A Regra do Jogo hoje obriga, portanto, à inevitável revisão de termos e leituras. Pois se a profundidade de campo e a mobilidade dos planos-sequência permanecem as mesmas, é inevitável que os sentidos de ambos os procedimentos hoje sejam bastante diferentes. Se, à época de seu lançamento, A Regra do Jogo usava esta construção como um arroubo de realismo no cinema, hoje o filme de Renoir chama atenção em sentido contrário, pela precisão mecanizada das coreografias de cena, a orquestração magistral dos elementos em quadro, a mobilidade expressiva com que os atores vão do fundo ao proscênio, abrindo a cena em um riquíssimo jogo de camadas. A relação hoje é menos debitária a uma sensação de presença – a de que nós “estamos ali”, dentro daquela casa, junto àquelas “pessoas” – e mais a de um balé absolutamente marcado, de uma câmera que passa de personagem a personagem feito telefone sem fio (traço de estilo que mais tarde seria levado adiante por Robert Altman), que denuncia sua própria construção, incorporando a euforia da vida burguesa em erupção, mas sem trazer para a mise en scène seus resíduos de caos. A crítica só é possível por o mundo filmado se apresentar em plena harmonia.
Esse desvio é importante, pois é ele que sustenta, ainda hoje, A Regra do Jogo como um filme absolutamente crítico. Muito como fará anos mais tarde Fellini em La Dolce Vita, essa joie de vivre aristocrata será contrastada à futilidade de seus hábitos e valores – traduzidos com perfeição na coleção de brinquedos mecânicos do marquês, reunindo bonecas robotizadas de pálpebras caídas a pianos que tocam por conta própria – e é justamente aí que o filme produz um curto-circuito. Ao mesmo tempo em que projetamos um olhar severo à aleatoriedade da vida e da morte (e, claro, do amor) nos costumes daquele grupo de pessoas que vêem na matança de coelhos e faisões (e de heróis!) não mais que o equivalente a um passatempo de inverno, somos tragados pelo redemoinho irresistível de seu ritmo de vida, de uma auto-crítica irônica (ressaltada pela presença em tela do próprio diretor, como o “parasita” Octave) que não poupa seus próprios valores. “Acabe com esta comédia”, ordena o marquês em determinado momento; “qual delas?”, pergunta seu empregado.
A Regra do Jogo é um filme ainda hoje fascinante muito pela maneira como o trágico e o sublime são obrigados a conviver. Renoir, diretor nada ingênuo, dispensa a imersão irrestrita – algo que ele tornaria a trabalhar mais tarde em outras chaves, em filmes como O Rio Sagrado – e cria um jogo que se abre progressivamente, expondo as fissuras da construção que são intrínsecas à aparência de perfeição. Para cada caça aos coelhos, temos os planos de bastidores, que mostram os empregados assustando os bichos de suas tocas para facilitar o divertimento dos patrões. Da mesma maneira, o teatrinho de variedades burguesas se mistura aos dramas inventados das próprias personagens (basta reparar a maneira como Christine reorienta seu amor de forma a compensar cada novo golpe do destino), dobrando uma parte sobre a outra, a ponto de que se torna impossível distinguir a “cena dentro da cena” da cena que vemos, de fato. A Regra do Jogo é uma crítica de costumes que parece se tornar cada vez mais atual, uma vez que o realismo do filme está justamente na denúncia da encenação cotidiana que sustenta, diegeticamente, o universo filmado. É um filme que se torna político por cada beijo estar sempre no limite da encenação escancarada de um beijo.
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