Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2010.
Uma solidão compartilhada
Inevitavelmente, Transeunte vai levantar o cadáver insepulto da discussão “ficção X documentário”. A questão aqui, porém, é menos de tensão de registros, e mais de estilo: a câmera solta passeia pelos ambientes sem decupagem definida, e se ocupa apenas de dar conta de Expedito (Fernando Bezerra), um senhor de idade avançada que, sozinho no mundo em estado de luto, cumpre as tarefas diárias acompanhado de seu radinho de pilha e seus fones de ouvido. O filme começa com um passeio ao lado do cemitério. A câmera corre paralelamente às grades que isolam o local, e as breves interrupções das barras de metal se aproximam do flickering de um rolo de película rodando. Ao fundo, o barulho das hélices de um helicóptero faz pensar no ruído do motor de um projetor de cinema.
Expedito sai do mundo dos mortos para adentrar o filme, sensação que permanece pela impressão de invisibilidade da personagem ao longo da primeira metade de projeção. Se essa breve sinopse poderia se configurar como anúncio de uma odisséia piedosa e, por isso mesmo, pessimista pela vida de um pobre diabo, aos poucos (e tudo neste filme acontece aos poucos) Transeunte se revela algo bastante diferente disso. Antes de mais nada por o filme ser, à sua própria maneira, uma adaptação (talvez inconsciente) de Ulisses, de James Joyce: a cidade se desdobra em uma polifonia caótica de vozes, ruídos e rostos, com uma montagem que organiza – por rimas, ritmos ou significado – o caos do próprio mundo, sem aniquilar sua irregularidade. Mas ao contrário de Leopold Bloom, pária passivo por natureza, Expedito é o editor ativo de sua própria vida. É ele quem decide quando interromper uma conversa entreouvida recolocando os fones no ouvido que promove a montagem do cotidiano, criando associações significativas mesmo quando aleatórias. Uma canção dá continuidade a uma frase, como um plano é montado com um contraplano. Expedito é solitário, mas não sozinho; sua solidão é ativa, seu olhar é soberano e suas decisões determinam seus próprios sentidos. Ele é vivo como poucos personagens do cinema brasileiro contemporâneo o são.
Essa solidão, porém, é compartilhada. Se os fones de ouvido se tornaram um símbolo fácil de recolhimento e alienação, esse sentido é invertido radicalmente em uma única cena do filme: após andar por toda a cidade ouvindo músicas pelo rádio, Expedito pára em um bar onde um conjunto de seresta se apresenta. Naquele momento, o gesto de colocar os fones de ouvido (agora desnecessários) é absolutamente re-significado: vemos as pessoas que cantam e tocam as canções. Escutar cada música, cada locutor, cada ouvinte que liga para compartilhar causos e experiências com seu programa de rádio favorito é, para Expedito, travar uma relação. A edição de sua própria vida depende do acaso, das falas do locutor de rádio, das músicas que o programador decidiu tocar. Depende, principalmente, que haja alguém do outro lado. Toda memória é questão de convivência.
Transeunte se firma, assim, como o trajeto do virtual para o concreto; a percepção de que, assim como as canções só existem se cantadas por alguém, Expedito só se torna personagem quando observado pelo filme – como os vários refletores do estádio de futebol se tornam uma única faixa de luz com um simples desfoque de câmera. Eryk Rocha cria um filme que, em sua imperfeição, consegue se reconfigurar continuamente ao longo da projeção, demonstrando candura onde parecia haver dureza, vontade de vida no que já parecia morto, e desejo de ficção quando todos os índices superficiais parecem apontar o contrário. Como em Contagem (2010), curta de Gabriel Martins e Maurílio Martins, o cinema é a busca do universal no particular, mas também o seu reverso: Expedito sai da massa difusa de velhinhos solitários do Centro do Rio de Janeiro e se torna protagonista de um filme; mas seu protagonismo só faz sentido se o filme lhe devolver à universalidade, lhe fizer reconhecível, lhe fizer estampa de seu próprio anonimato. Não à toa, as grades do cemitério serão retomadas bem mais à frente no filme, com o mesmo flickering dos primeiros planos; mas dessa vez, são as grades de um parque, com árvores que resplandecem vivas na composição. Expedito sai do mundo dos mortos e, na cintilação dos fotogramas a correr frente à luz do projetor, ganha vida, se torna “um”, para então – montador de sua própria vida – seguir, com o último plano, caminhando para dentro do filme, permanecendo indivíduo além da inevitabilidade dos créditos finais.
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