Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2010.
A diferença na igualdade
O Errante, filme de estréia de Avishai Sivan, é exemplo ideal daquilo que se convencionou chamar de “estética dos festivais” (ao menos dos internacionais): estrutura em tableaux; esvaziamento das personagens; humor de extrema secura; enquadramentos de sensível rigor visual; e, claro, a incomunicabilidade – mal do século que domina o cinema “de arte” pelo menos desde a chegada de uma avalanche italiana de nome Michelangelo Antonioni. Sempre que vemos um conjunto de filmes de alguma expressividade nos festivais internacionais, é inevitável que encontremos ao menos um que suscite essa mesma descrição. Em geral, são filmes que, mesmo quando não de todo condenáveis, são tão acomodados no rigor da referencialidade que induzem pouco ou nada à reflexão.
Mas dentro dessa palheta há gradações: mesmo entre os filmes médios – lugar onde está parte considerável da produção cinematográfica de qualquer época – há alguns que trabalham melhor suas próprias convenções, sejam elas as da última encarnação do clássico narrativo, ou da cartilha contemporânea do cinema de menções honrosas. O Errante não faz por merecer defesa, destaque ou mais do que um leve tapinha nas costas. Mas, se entre os diluidores há os mais e os menos habilidosos, é inevitável perceber que Avishai Sivan extrai algo de mais particular de sua mistura de influências – a rigor, Tsai Ming-liang e Elia Suleiman, dois sujeitos fundamentais pra esse nicho do cinema contemporâneo – do que diluidores menos competentes (como Javier Rebollo, no Festival do Rio com A Mulher sem Piano).
Ao universal, o particular; é um pouco dessa máxima que Sivan cria os melhores momentos de seu filme de estréia. Pois se há algo especialmente castrador na repetição sistemática de convenções é justamente o quanto ela é capaz de dizimar diferenças: Taiwan é igual à Romênia, que é igual à Espanha, que é igual à Coréia e ao Brasil. Filma-se a distinção de maneira indistinta e qualquer possibilidade de particularidade escorre diretamente para o ralo do indefinido. Mesmo com tudo o que há de ordinário no filme, O Errante consegue sustentar o interesse justamente por se atentar para isso: estamos a ver um filme israelense, sobre personagens que só podem existir dentro de um nicho cultural muito específico e que respondem às demandas desse próprio nicho. E justamente por filmar esse universo de forma tão comum, O Errante mobiliza um choque inicial ao nos colocar diante de uma paisagem visual ainda não explorada, que ele aprofundará nos mesmos recortes que os filmes que lhe são matriz o fazem: as passarelas; a comida; os hospitais; os cultos religiosos; as vestimentas; etc.
Mas o que realmente parece sobressair, mesmo que minimamente, em O Errante é a maneira como Avishai Sivan consegue temperar essa fidelidade ao sistema das obras às quais ele voluntariamente se filia com pequenas perversões de outros gêneros. Daí vêm as rupturas mais curiosas do filme, seja para o mal – como a mudança abrupta de tom na metade final que, mesmo precisando ser abrupta para fazer sentido, parece sobretudo mal orquestrada – ou para o bem. É pela capacidade de filmar um exame de sangue como uma comédia facial, e uma encomenda de camisinhas como uma verdadeira cena de suspense que Avishai Sivan se coloca um pouco acima da média dos médios, com uma mínima promessa de diferença em um reino de iguais.