Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2010.
A síndrome da informação
Nossa Vida Exposta traz diversas das qualidades que DiG!, filme de 2004 também dirigido por Ondi Timoner, já apresentava: uma escolha de tema de forte interesse para o nicho no qual o filme pretende se inserir (em DiG!, a rotina de duas bandas iniciantes e que, à época, começavam a atrair alguma atenção; em Nossa Vida Exposta, os feitos de Josh Harris, artista, empreendedor e pioneiro da internet); uma insistência incomum e providencial de realização (em DiG!, alguns anos; em Nossa Vida Exposta, quase duas décadas); e, sobretudo, um acesso raro ao universo documentado. Ondi Timoner faz filmes sobre pessoas que ela conhece e que frequentam lugares nos quais ela se sente à vontade, o que permite que testemunhemos momentos que dificilmente veríamos em um filme feito “de fora”. Em DiG!, essa relação entre documentarista e personagens era tão aberta que beirava a promiscuidade – algo comprovado no rompimento de alguns personagens com a diretora após o lançamento do filme.
Em Nossa Vida Exposta, mais uma vez temos ressaltada essa qualidade de testemunho: quando Josh Harris leva suas idéias ao extremo e cria o projeto “Quiet: We Live in Public” – uma comunidade vigiada por câmeras 24 horas por dia, que misturava hedonismo e fascismo em um único experimento – Ondi Timoner e sua câmera estavam lá, entre os moradores voluntários. Parte considerável do que o filme tem de mais interessante vem justamente daí: a possibilidade de presenciar esses eventos – que Timoner faz questão de legitimar, com depoimentos da intelligentsia de cada campo, seja ele o da internet, o pessoal ou mesmo o artístico – de experimentar os acontecimentos como a imprensa tradicional nunca foi capaz, e com um tempo de decantação inviável fora do documentário. A menção à imprensa, porém, já faz entrever os maiores problemas do trabalho da documentarista. Pois, a rigor, seus filmes não vão muito além da reportagem dedicada: não há um olhar artístico, uma intenção mais clara para além da exposição do registro, tampouco um talento real na maneira de articular esse material. Ao contrário, Nossa Vida Exposta é repleto de cortes da mais pobre associação, seja o corte entre imagens, ou entre som e imagem. Timoner tem uma relação estritamente informativa com o material, e qualquer tentativa de articulação estética está fadada ao fracasso. Sua incapacidade de compreensão artística é tamanha que torna possível uma canção dos Pixies sobre suicídio seja conjugada a cenas da queda das duas torres gêmeas, tão somente por o título ser “Wave of Mutilation”. Pouco importa, portanto, que o uso seja leviano, e o resultado, grotesco – guitarras falando de uma onda de mutilação é caminho mais fácil para uma leitura roqueira do 11 de Setembro. O sentido é subjugado ao choque do óbvio, e o óbvio é quase sempre vulgar.
Mas DiG! trazia todos esses vícios e era, ainda assim, um filme de inegável força. O problema é que quando se filma a rotina de bandas de rock entre festas de cocaína, pancadarias entre os integrantes no meio de um show, e atestados de um fracasso provocado, a força do material é tão bruta e carnal que sua simples exposição já lhe basta. Nossa Vida Exposta, porém, se dedica a questões bem mais engenhosas e, diante delas, a abordagem televisiva de Ondi Timoner fracassa em quase todos os aspectos imagináveis. Toda a possibilidade de confronto de registros (uma vez que os experimentos de Harris sempre envolviam a auto-exposição audiovisual completa e voluntária), de contextualização artística (o trabalho de Harris parece o elo perdido, e não necessariamente bem sucedido, entre os punks de Nova York e o questionamento espacial que predomina nas instalações expostas em bienais de arte desde então), a possibilidade de inversão perversa das idéias que ferviam na mesma Nova York vinte ou trinta anos antes (se colocar no mundo pode ser uma forma de arte, mas essa consciência se transformou inevitavelmente em uma forma de comércio) – tudo isso é ignorado em nome da informação pura e simples, do registro pelo registro. E aí resta apenas o shock value barato da denúncia de como a vida das pessoas é hoje controlada pela internet, e de como a privacidade se tornou uma mercadoria moderna. Nossa Vida Exposta carrega consigo a inutilidade que o jornalismo moderno tomou como missão: informar o espectador daquilo que ele há muito já sabe.