Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2010.
A afirmação do mistério
Se em seu filme anterior, Tudo Isso Me Parece um Sonho (2008), Geraldo Sarno já empreendia uma jornada interessada – mesmo que nublada e sem pulsação – pelo processo de criação artística, em O Último Romance de Balzac ele é de fato começo e fim, forma e conteúdo do filme. Não há, portanto, intenção de questionar ou de verificar o quanto há de verdade ou de invenção (pois, mesmo se não duvidamos de sua autenticidade, há um pouco dos dois) no relato de Waldo Vieira de como Balzac teria lhe aparecido e soprado, palavra a palavra, o livro em seu ouvido. Mediado pela pesquisa acerca do livro de Waldo/Balzac feita por Osmar Ramos Filho (essa sim uma investigação mais tradicional), o filme ouve seus relatos apenas para afirmar o mistério do próprio ato criativo. A cada nova “coincidência” entre o romance de Waldo e a obra de Balzac, importa menos o quanto há de religioso ou de charlatanismo no processo, e mais o quanto esse processo – opaco e impenetrável – é sempre misterioso (daí o filme nunca voltar a Waldo com as conclusões do professor Osmar para conferi-las, ou para questioná-lo). Interessa, portanto, menos uma verdade por trás do fato, e mais o fato em si: um filme feito a partir de uma pesquisa, a partir de um livro que, mesmo que falso, contribui na compreensão do objeto “verdadeiro”.
O que Geraldo Sarno faz – com uma vitalidade absolutamente contagiante – é justamente emaranhar ainda mais esse espelhamento. O Último Romance de Balzac se firma, dessa maneira, como um filme de empréstimo, dedicado não só ao empilhamento de camadas, mas principalmente à maneira como cada uma – mesmo quando exposta em plena falsidade – é capaz de enriquecer as outras. O filme não questiona a autenticidade de uma obra, mas sim o autêntico dentro do conceito de obra de arte. Suas sequências inspiradas no cinema silencioso satirizam o estilo da época, mas o fazem com índices muito claros de anacronismo, de revelação da “mentira”: a película é trocada pelo vídeo, o formato de tela passa do 1.33:1 original para o 1.85:1 moderno (introduzido no mercado somente em 1953). Da mesma maneira, Rafael – personagem de A Pele de Onagro supostamente inspirado no pintor Paul Potter e, por isso mesmo, índice de “veracidade” essencial – tem sua aparência completamente transformada na transposição do texto para a porção silenciosa do filme de Sarno: enquanto no romance ele é loiro e de cabelos cacheados, no filme ele é moreno, com uma barba fechada que mal deixa ver seu rosto.
Com essas variações, Sarno faz um duplo processo: deturpa a obra original para, com isso, afirmá-la. O espelhamento, portanto, é mais como o daqueles brinquedos de parque de diversões, onde espelhos de angulações e propriedades diferentes deformam nossa imagem de inúmeras maneiras, e ainda assim nos reconhecemos. A sensação ao se assistir O Último Romance de Balzac não é muito diferente: a cada minuto nos vemos mais entretidos por esse jogo de distorções, ao mesmo tempo em que criamos uma imagem mais complexa e múltipla dessa obra primeira que Waldo Vieira, o professor Osmar e o próprio Geraldo Sarno usam, todos, como referência. O interesse de Sarno é justamente evidenciar o quanto essas distorções não só são inerentes ao processo de criação e entendimento, mas também o quanto são essenciais na conservação do espírito original das obras. Isso fica claro na sequência em que um pintor, convidado por Osmar Ramos Filho para recriar a tela de Potter mencionada no romance psicografado, explica seu processo de pastiche: há muito de cópia, de imitação, mas também de leitura, compreensão e criação. Nesse sentido, O Último Romance de Balzac é, de fato, um filme de absoluta imanência: para a conservação plena do espírito, é sempre preciso moldar-lhe um corpo ideal.
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